Incidente do Cormorant

admin |16 janeiro, 2018

Blog | Rastro Ancestral

Apesar de serem países amigos e cordiais parceiros comerciais, na segunda metade do século XIX, o Brasil e a Inglaterra tinham um ponto conflitante quando o assunto era o tráfico negreiro. A Inglaterra era totalmente contra a prática, enquanto os políticos brasileiros, em concordância com os fazendeiros latifundiários, procuravam ganhar tempo quando se tratava da extinção deste comércio. Acordos já existiam, porém, sua aplicação não era executada na costa brasileira.

Desde o início do século XIX, já havia tratados entre o Brasil e a Inglaterra proibindo o tráfico de escravos da África para o Brasil, sendo estes assinados em 1826 e 1831, mas não cumpridos.

O porto de Paranaguá, no sul do país, tornou-se o local preferido pelos traficantes de escravos, que eram contrabandeados para outros locais. Existem documentos históricos que comprovam a entrada ilegal de escravos, inclusive com a conivência das autoridades locais e do próprio Delegado. Uma lei de 7 de novembro de 1831, bastante específica, era simplesmente ignorada, e o torpe contrabando de escravos se processava naturalmente.

Os ingleses, que haviam abolido o tráfico para suas colônias em 1807, pressionavam o Brasil de todas as formas para que acabasse com esse comércio, inclusive como um dos itens embutidos no pacote de exigências para que reconhecessem nossa Independência. Entretanto, o Brasil não cumpria o acordo.

Ressalte-se que a história do tráfico de escravos nas costas brasileiras até hoje não foi bem escrita. É um capítulo que os historiadores ainda não se atreveram a esmiuçar.

Só no Rio de Janeiro, não mencionando as outras províncias, durante o período de 1796 a 1830, atracaram 1.576 navios negreiros, desembarcando mais de 700.000 escravos.

Como os brasileiros não se dignavam a cumprir tais tratados, em 8 de agosto de 1845, o Parlamento Inglês aprovou a lei Bill Aberdeen, para reprimir o tráfico negreiro. A lei permitia a apreensão de navios negreiros, mesmo que fosse em águas territoriais do país que exercesse o torpe tráfico de escravos, em especial do Brasil, autorizando, inclusive, a invasão de portos, a prisão e a destruição de navios que contrabandeavam seres humanos. Os navios de Sua Majestade cumpriram com determinação e rigor esta ordem. Para a costa brasileira, algumas naves britânicas, baseadas no Rio da Prata, foram orientadas a intensificar esta atuação no início de 1850.

Apesar de a então poderosa Inglaterra ter aprovado uma lei tão unilateral, na verdade, mesmo com o empenho das autoridades brasileiras, o contrabando de escravos neste país era uma calamidade. Tratava-se, inclusive, de um problema cultural e econômico, pois o tráfico foi o maior negócio de importação do país até 1850.

A flotilha inglesa chegou ao Brasil, vinda da África, em setembro de 1849, sob o comando do contra-almirante Barrington Reynolds. A nau capitânia era a veterana fragata HMS Southampton, com 34 anos de serviço, sob o comando do capitão Nicholas Cory e guarnecida com quase 60 peças de artilharia.

Havia ainda a corveta a vapor com hélices HMS Sharpshooter, sob o comando do tenente John Barley, a corveta a vapor HMS Rifleman, sob o comando do tenente Stephen Smith Lowther Crofton, a corveta a vapor HMS Tweed, sob o comando de Lorde Francis Russell, a corveta a vapor HMS Harpy, sob o comando do tenente Dalton, a corveta a vapor com rodas laterais HMS Cormorant, sob o comando do capitão Herbert Schomberg, e barcos de apoio que traziam carvão da Inglaterra.

O Cormorant era uma corveta da Classe Drive, com casco de madeira, lançada em 1842. Possuía propulsão a vapor e a vela, com uma grande roda de pá na lateral. Tinha um deslocamento de 1.590 toneladas, 55 metros de comprimento, uma tripulação de 45 homens e um armamento de quatro canhões laterais de calibre 64 e duas torres sobre eixos com canhões de calibre 80.

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Capitão Sir Alexander Schomberg, avô do capitão do HMS Cormorant. Quadro de Willian Hogarth – Fonte – es.wahooart.com

Já o capitão Herbert Schomberg era um calejado comandante naval, proveniente de uma linhagem de oficiais bem preparados da Royal Navy.

Seu avô, o capitão Sir Alexander Schomberg, destacou-se na Guerra dos Sete Anos. Já seu pai, o almirante Alexander Wilmot Schomberg, obteve comandos importantes nas Guerras Napoleônicas.

Schomberg ingressou na Royal Navy em dezembro de 1817.

Serviu durante quatro anos ao largo da costa da América do Norte, no Canal da Mancha e nas Índias Ocidentais, onde o navio foi empregado na repressão da pirataria.

Foi promovido a tenente em setembro de 1827 e, entre fevereiro de 1828 e setembro de 1829, esteve envolvido em operações de combate ao contrabando na costa da Irlanda e no bloqueio de Tânger.

Recebeu a promoção a capitão em junho de 1841.

Voltando ao caso brasileiro, como os barcos de guerra ingleses deveriam impedir o tráfico de escravos em veleiros nas costas brasileiras, havia uma lista de navios brasileiros preparada pelo inglês Mr. Hudson, encarregado dos negócios da Inglaterra, ao contra-almirante Reynolds. Hudson era, na verdade, um espião a serviço de Sua Majestade no Rio de Janeiro e, com sua ajuda, as embarcações da Royal Navy caçavam esses barcos em nossas costas com grande tranquilidade.

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Corveta inglesa HMS Driver, idêntica ao HMS Cormorant que provocou o Incidente de Paranaguá – Fonte – http://en.wikipedia.org – (Mesmo Modelo da Cormorant).

Em um preguiçoso domingo, 29 de junho de 1850, surgiu na Baía de Paranaguá o casco negro da corveta HMS Cormorant.

Paranaguá, no litoral da província do Paraná, tornara-se um dos principais centros de contrabando de escravos no sul do Brasil.

Naquele labirinto natural de ilhas costeiras, os traficantes utilizavam algumas delas para desembarques clandestinos. Essa informação também era do conhecimento da Royal Navy.

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Foto de satélite da região da Baía de Paranaguá, com destaque para a Ilha do Mel. Pela imagem é possível ver a posição estratégica da Ilha do mel em relação ao resto da baía. Fonte – timblindim.wordpress.com

Para seguir adiante naquele setor e transpor a Barra de Paranaguá, o capitão Schomberg contratou os serviços de um prático na Ilha do Mel, situada na embocadura da baía.

Este foi o pescador Manoel Felipe.

Os ingleses chegaram ao porto do Alemão, na Ilha de Cotinga.

Neste porto, estavam fundeados seis navios mercantes.

Utilizando-se de dois escaleres e sob o comando dos tenentes Charles Maxwell Luckraft e Herbert Philip de Kantzow, os invasores atacaram em um golpe rápido e o brigue Dona Ana, seguido do brigue Serea, foi dominado. Vendo o ataque aos mercantes, o comandante do terceiro brigue, o Astro, resolveu afundá-lo para evitar que a “carga” (dezenas de sofridos escravos oriundos da África) fosse pilhada e o navio apreendido.

O barco de 176 toneladas ficou apenas com os três mastros para fora d’água, e os africanos morreram afogados.

Após o ataque, os ingleses foram vistoriar os porões dos navios. Tal foi a surpresa ao constatar que ali existiam apenas víveres.

Todas essas naves detidas eram suspeitas de tráfico. No ofício, o comandante invocava a convenção perpétua entre o Brasil e a Inglaterra, e que, como chefe da Esquadra Britânica nesta região, tinha ordens para examinar todos os navios suspeitos de estarem empregados no tráfico de escravos.

Alguns parnanguaras, cerca de 80, especialmente jovens, inconformados com a violação das nossas águas territoriais, se reuniram e foram levar o ofício ao Juiz Municipal, que se recusou a recebê-lo, alegando que era apenas uma autoridade judiciária.

Em seguida, foram ao Delegado de Polícia, que também referiu não ser de sua alçada. Então, visitaram a autoridade militar, o coronel da Guarda Nacional, o maçom Manoel Antônio Guimarães (“Loja União Paranaguense”), futuro Visconde de Nácar, o qual alegou que se deveria ouvir a palavra do Capitão Joaquim Ferreira Barbosa, comandante da Fortaleza da Ilha do Mel.

Ao ser perguntado pelo jovem Francisco José Pinheiro o que fazer com o ofício, o coronel sugeriu ironicamente: “Deite-o no correio, que há de ir para a pessoa mais indicada para recebê-lo.”

Entretanto, o juiz municipal do Termo de Paranaguá, Filastro Nunes Pinto, enviou um ofício ao comandante do Cormorant, protestando contra a invasão e exigindo respeito aos “mares territoriais” brasileiros.

O povo achou que as autoridades locais foram ineptas e, na mesma noite, improvisaram embarcações. Após conseguirem armas, munições e alimentos, dirigiram-se até a Fortaleza Nossa Senhora dos Prazeres da Barra de Paranaguá, localizada na Ilha do Mel. Desta vez, convenceram o seu comandante, o capitão Joaquim Ferreira Barbosa, sobrinho do cônego Antônio Januário Barbosa, maçom que participou ativamente da fundação do Grande Oriente Brasiliano e da Independência do Brasil, partidário de Ledo, a abrir fogo quando o navio estivesse saindo da baía.

E assim foi feito. A moderna corveta bem equipada saiu em direção à barra no dia 1º de julho, foi atingida pelos tiros dos velhos canhões do forte e respondeu ao fogo. O combate durou cerca de um quarto de hora e, ao se afastar do alcance, incendiou os bergantins próximos da Ilha das Conchas e os afundou, levando a “Campeadora” a reboque.

Não houve baixas na fortaleza, exceto alguns estragos materiais. Porém, seus tiros ocasionaram ferimentos em vários e a morte de um marinheiro do Cormorant, além de avariar os bergantins que estavam rebocados e causar pequenos danos na corveta.

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Nota do o jornal paranaense “A República”, durante a comemoração do cinquentenário do Incidente de Paranaguá, em 1 de julho de 1900.

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A Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres de Paranaguá está localizada na praia da Fortaleza, no sopé do Morro da Baleia (hoje da Fortaleza), na Ilha do Mel, cidade de Paranaguá, no litoral do Estado do Paraná.- Fonte – fortalezas.org.

O Presidente da província protestou, mas em vão. O comandante do forte se explicou posteriormente perante um Conselho de Guerra, sendo absolvido, mas destituído do comando da Fortaleza, passando a soldado de terceira classe do Exército, apesar de elogiado pelo então presidente da Província de São Paulo, Vicente Pires da Mota. Vale lembrar que, nessa época, o Paraná ainda era a 5ª Comarca da Província de São Paulo.

Foi a força da diplomacia inglesa que assim o exigiu, e o Brasil aceitou, pois estava sendo governado por um imperador fraco, segundo David Carneiro. Por isso, o capitão acabou sendo visto como vilão, quando, na verdade, foi mais um dos nossos heróis desconhecidos.

Este incidente causou um delicado embaraço nas relações entre o Brasil e a Inglaterra, pois a pressão diplomática que este país exerceu foi muito grande. No entanto, foi útil, especialmente ao Brasil, porque, em 4 de setembro de 1850, a Lei Eusébio de Queirós (grau 33 – Membro Honorário do Supremo Conselho do Brasil) proibiu definitivamente o hediondo tráfico de escravos no Brasil.

Entretanto, até 1861, existem relatos de que ainda continuava o tráfico pela barra do Rio Superagui, em Paranaguá, por onde entravam embarcações negreiras que iam até Guaraqueçaba, fazendo contrabando de escravos.

Entre os parnanguaras mais exaltados que se dirigiram à histórica Fortaleza da Ilha do Mel, estava um jovem de nome Previsto Gonçalves Columbia, que seria futuramente maçom e combatente na Guerra do Paraguai, além do tenente Joaquim Caetano de Souza e Francisco José Pinheiro, que pertenceriam à Loja “Perseverança” de Paranaguá, e Manoel Francisco Grillo, à Loja “Modéstia” de Morretes.

Hamilton F Sampaio Junior.

Referências:

Hercule Spoladore – A História da Maçonaria Paranaense no seculo XIX.
Carneiro D. “A história do Incidente Cormoran” – Edição da Municipalidade de Paranaguá Paranaguá,1950
Machado, M.L. “Sangue e Bravura” – Oficina Gráficas da Penitenciária do Paraná – Curitiba, 1944
Martins R. “História do Paraná – Editora Rumo Ltda. São Paulo, 1939 –
Wachowicz, R.C. “História do Paraná- Editora Gráfica Vicentina Ltda. – Curitiba,1988 Dicionário Histórico – Biográfico do Estado do Paraná – Editora Livraria do Chain – Curitiba, 1991 Corda de 81 Nós
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