A Camélia Branca

admin |20 junho, 2018

Blog | Rastro Ancestral

Damião estava lembrando de tudo o que lhe havia acontecido dois meses antes, tudo parecia ter acontecido em menos de algumas horas, a infância no Quilombo, as surras que levava do Feitor, o medo de quem vivia preso pelos pés num calabouço chamado senzala “lembrava-se de ter sido levado à casa de meu senhor, que atou minhas mãos para trás, colocou-me de pés juntos, chicoteou-me sem misericórdia e me espancou na cabeça e nas faces com uma vara pesada“,  quando jogava capoeira que à época era proibida. Lembrava-se de quando em uma noite sem lua os “CAIFAZES” tinham lhe arrancado para a liberdade, lembrava dos operários da Estrada de Ferro Inglesa Santos/Jundiaí que haviam ajudado no embarque logo após a fuga, e todas essas coisas pareciam um turbilhão em sua cabeça de memórias lembranças, lembrava do Sr Antonio Bento nos fundos de uma igreja São Gonçalo em São Paulo, lhe passando as informações de como reconhecer quem iria lhe receber no Rio de Janeiro, não podia esquecer, qual o “sinal” que haviam combinado, sentia-se aturdido desde sua partida na Estação Ferroviária do Brás que ligava a cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro o qual deveria fazer uma baldeação.

Estou me esquecendo… Quando chegar lá na plataforma da Estação Dom Pedro II, como vou identificar a pessoa certa na multidão? 

Ahh , me lembrei agora. É um homem branco, bem vestido, que terá uma flor branca na lapela do paletó

Mas qual flor branca? 

Ahh é, uma Camélia, uma camélia branca. Como aconteceu de esquecer? Devo repetir para identificar a flor na lapela do meu salvador.”

A Camélia Branca 

Um dos grandes símbolos da Abolição da Escravatura no Brasil foi uma plantação de flores no Rio de Janeiro.

No final do século XIX, a camélia ainda era uma flor rara no Brasil, assim como a liberdade dos negros.

A planta traz sua procedência no nome científico, Camellia japonica.

Do Japão, veio para ornamentar jardins de nobres e burgueses, que começavam a desabrochar para ideais mais humanistas.

José de Seixas Magalhães era um deles.

Na década de 1880, no Quilombo do Leblon, escravos fugidos e bem articulados cultivavam delicadas camélias, que depois vendiam pela cidade.

O Quilombo no Leblon foi idealizado pelo português José de Seixas Magalhães, homem de idéias avançadas, fabricante de malas e sacos de viagem.

Em sua chácara, cultivava camélias com o auxílio de escravos fugidos e com a cumplicidade dos principais abolicionistas da capital do Império, flores que eram o símbolo por excelência do movimento abolicionista e da Confederação Abolicionista. Com a proteção do Imperador e de sua filha, o Quilombo do Leblon nunca chegou a ser seriamente investigado, continuando Seixas a enviar à princesa seus subversivos ramalhetes de camélias.

A Princesa ousou, algumas vezes, aparecer em público com uma dessas flores a adornar-lhe a roupa, fato sempre notado pelos jornais.

Foram-lhe oferecidos, inclusive, quando da assinatura da Lei Áurea, buques de camélias pelo presidente da Confederação Abolicionista, João Clapp, e pelo Seixas.

As flores subversivas viraram símbolo da causa. Quem colocava uma camélia na lapela ou a cultivavam no jardim da casa confessava sua fé abolicionista.

flor servia como uma espécie de código de identificação entre os abolicionistas, principalmente quando empenhados em ações mais perigosas, ou ilegais, como auxiliando fugas ou conseguindo esconderijo para os fugitivos. Um escravo podia identificar imediatamente possíveis aliados pelo uso de uma dessas flores no peito, do lado do coração.

Naqueles tempos, usar uma camélia na lapela ou tê-la em seu jardim em casa, era uma quase acintosa confissão de fé abolicionista.

Alguns pés de camélias remanescentes desse tempo simbólico ainda podem ser encontrados nos jardins, como os da Casa de Rui Barbosa, atuante membro do movimento abolicionista.

Estes pés de camélia são documentos vivos e, em algumas épocas do ano, floridos, da história do Brasil.

Em 1888, no clímax da campanha abolicionista, a princesa Isabel organizou festa inspirada em comemorações francesas, a Batalha das Flores. Objetivo: mobilizar a alta sociedade de Petrópolis – sede da família imperial – e arrecadar fundos para a Confederação Abolicionista. No carnaval de 1888, 12 de fevereiro, a princesa, o marido, conde d’Eu, filhos e amigos percorreram a cidade em carruagem ornamentada com camélias.

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Recolhiam doações e retribuíam com flores.

 

Sucesso entre os abolicionistas. Indignação entre os escravocratas.

 

O barão de Cotegipe, escravista e presidente do Conselho dos Ministros Imperiais, caiu.

 

No dia 13 de maio de 1888, no momento em que a princesa Isabel assinava a chamada Lei Áurea (n° 3.353), foram-lhe entregues dois buquês de camélias, um, artificial, pela diretoria da Confederação, em nome do movimento vitorioso, e outro, de flores naturais, vindas do quilombo do Leblon, por gente do povo, que o abolicionista Rui Barbosa definiu como “a mais mimosa das oferendas populares.”

 

Bom Vamos a História….

Não podemos falar nas “Camélias Brancas” sem falar nos CAIFAZES em Luis Gama e Antonio Bento que o sucedeu no movimento abolicionista esses gigantes negros que muito contribuíram para a abolição no Brasil.

Era uma rede clandestina extremamente organizada. Ramificava-se em vários setores da sociedade para tramar investidas ilegais contra o patrimônio privado. Armava sequestros, rebeliões e fugas em massa. Seu líder, ex-juiz e ex-delegado de polícia, conhecia as artimanhas do poder e tinha o suporte de influentes figuras da elite. Também contava com apoio popular. As ousadas investidas de seu grupo desestabilizaram a economia da época. Os caifazes – assim eles eram chamados – causavam pânico e despertavam ódio nos senhores da terra.

Mas esta era uma milícia do bem. Sua missão: libertar escravos, escondê-los, prover seu sustento e arranjar-lhes emprego assalariado. Assim como Caifás, o personagem bíblico que inspirou o nome do grupo, sua “traição” se destinava a um fim nobre.

No Evangelho está escrito que Caifás pagou Judas para que entregasse Jesus Cristo. O resultado foi a salvação da Humanidade. Já os caifazes de Antonio Bento formaram uma inédita força abolicionista no final do século XIX, em São Paulo.

Com o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, cresciam as rebeliões escravas no estado. Em seis anos, o conflito dizimara milhares de soldados brasileiros – e entre eles os negros eram tantos que formavam, segundo a propaganda racista paraguaia, “um exército de macacos”. Eram os “Voluntários da Pátria”, escravos alforriados pelo imperador para irem lutar na guerra, ou mandados para o combate em lugar dos filhos de gente abastada, que assim escapava à “recoluta”, o temido recrutamento militar. A eles era prometida a liberdade quando retornassem. Promessa não cumprida: o fim da guerra os devolvera à amarga realidade da chibata e do tronco nas fazendas de café, a base do novo poder econômico paulista.
Agitações e fugas de escravos tornaram-se frequentes, e cada vez mais numerosos os seus apoiadores. Entre estes destacou-se Antonio Bento de Souza e Castro (1843-1898). Filho de uma abastada família paulistana, ele era visto como excêntrico por seus modos e sua aparência. “Magro, estreitado, do tornozelo à orelha, no longo capote preto como num tubo, chapéu alto, cabeça inclinada, mãos nos bolsos, quebrando contra o peito pela fenda da gola o rijo cavaignac de arame, o olhar disfarçado nos óculos azuis como uma lâmina no estojo, marcha retilínea de passo igual tirado sobre articulações metálicas…”, como foi descrito pelo escritor Raul Pompéia.

Antônio Bento de Sousa e Castro

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Antonio Bento de Sousa e Castro.

Formado bacharel em Direito em 1868, Antonio Bento logo assumiu a promotoria pública da comarca de Botucatu, sendo em seguida transferido para a de Limeira. Três anos depois já era juiz municipal em Atibaia. Tinha então 29 anos. Acumulando as funções de juiz e delegado de polícia, tornou-se figura controversa na cidade – em meio a disputas políticas de conservadores, liberais e republicanos –, especialmente por seus despachos favoráveis aos escravos, sustentando que era ilegal manter nessa condição os africanos introduzidos no país após as leis de 1831 e 1850, que proibiram o tráfico. Também costumava nomear abolicionistas para arbitrar o preço das cartas de alforria. Eram motivos suficientes para desencadear contra o juiz a fúria das elites locais, dos escravocratas e de magistrados favoráveis a seus interesses. Antonio Bento chegou a sofrer tentativas de assassinato, e em 1875 acabou demitido, “a bem do serviço público”, por pressão dos desafetos. Mal sabiam que, longe de suas funções oficiais, o ex-juiz cairia nos braços da militância abolicionista mais aguerrida. E se tornaria célebre por isso.

Radicado em São Paulo desde 1877, dedicando-se à advocacia e ao jornalismo – como editor, entre outros, do jornal A Redenção –, conheceu o abolicionista Luiz Gama em 1880. Dois anos depois, juraria diante do túmulo do amigo ocupar seu lugar à frente da luta contra a escravidão. Mas estava disposto a agir por métodos distintos da batalha jurídica travada por Gama. Nascia ali a ideia de organizar seus caifazes.

Negando o instrumento legal da alforria como única via de emancipação, o grupo valia-se da força e da astúcia para atacar diretamente a propriedade escrava. Para isso, contava com centenas de colaboradores anônimos. Organizados em pequenos grupos de ação nas cidades ou disfarçados de caixeiros-viajantes no interior – os chamados “cometas” –, promoviam fugas em massa das fazendas, roubavam escravos em casas de família e realizavam mirabolantes resgates em estações ferroviárias. Depois ajudavam os fugitivos a chegar a refúgios seguros, como o Quilombo do Jabaquara, organizado e mantido por abolicionistas santistas a partir de 1882, e por onde se calcula que passaram cerca de 10 mil escravos fugidos.

Um dos segredos de Antonio Bento para costurar sua vasta rede de solidariedade era circular por diferentes setores sociais. Se por um lado era integrante da Maçonaria, filiado à loja Piratininga, e provedor da poderosa Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, convivendo de perto com membros da elite, também participava ativamente das confrarias religiosas negras de Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia e Santo Elesbão. O movimento dos caifazes contava assim com a ação de magistrados, advogados, chefes de polícia, parlamentares, jornalistas, comerciantes, donos de armazéns, controladores da Alfândega, empregados em serviços de navegação costeira e de longo curso e até mesmo membros de famílias de fazendeiros e corretores de café, mantendo também, ao mesmo tempo, uma vigorosa rede de apoio popular.

Os mais abastados bancavam os deslocamentos dos caifazes e “cometas”, a fuga e o refúgio aos escravos foragidos e até as custas dos processos para conseguir sua libertação ou a compra das cartas de alforria. Tratavam também de conseguir para os escravos resgatados colocações como trabalhadores livres em fazendas de café de outras regiões, no porto ou em pequenos serviços urbanos, como carregadores, carroceiros, pedreiros ou vendedores.

Por sua vez, a arraia miúda do povo, organizada em torno das irmandades negras, dava ao movimento um apoio invisível, mas vital. Era o caso dos modestos empregados das estradas de ferro – ironicamente, a última novidade destinada a incrementar a exportação do café. Graças àqueles caifazes, os trens se tornaram o principal meio para as fugas de escravos, que eram conduzidos clandestinamente até a capital ou o porto de Santos. Cocheiros e carroceiros das estações eram outros a favorecer escapadas espetaculares, em resgates feitos em plena luz do dia. Houve mesmo um caso em que se juntaram a cerca de 500 populares na astuciosa armação de um conflito de rua, onde destemidos capoeiras desbarataram um grupo de policiais e capitães do mato para impedir que dez escravos por eles recapturados, depois de chegarem a Santos escondidos em tonéis de vinho, fossem embarcados no trem que iria conduzi-los de volta a fazendas do interior.

Em Santos, gente do povo e até imigrantes se encarregavam de cuidar das necessidades cotidianas da população flutuante de fugitivos do Quilombo do Jabaquara. Era o caso da negra Brandina, uma dona de pensão, e seu amásio, Santos “Garrafão”, português empregado numa casa de comércio de um influente abolicionista. Juntos, Brandina e o português mantinham um pequeno quilombo na Ponta da Praia e forneciam alimentos e cuidados de saúde na Santa Casa de Misericórdia para os refugiados no Jabaquara. “Garrafão” era um dos principais articuladores entre os caifazes de Antonio Bento em São Paulo e os abolicionistas santistas.

Ao confiscar a mão de obra escrava e inserir os recém-libertos no mercado de trabalho assalariado, Antonio Bento e seus caifazes conseguiram desarticular as bases da economia cafeeira paulista na década de 1880. Suas ações refletiam um sentimento que cada vez mais se generalizava entre todas as classes sociais: o repúdio à escravidão. Quando as próprias forças de segurança começaram a se recusar a perseguir os escravos fugidos tal o seu número, não era difícil antever a proximidade da abolição. Muito mais que uma concessão do poder imperial, ela foi, em São Paulo, uma conquista do povo e dos próprios escravos.

Uma década depois da abolição, o nome de Antonio Bento ainda era difícil de engolir para parte da elite paulistana. Prova disso foi o estranho elogio fúnebre que lhe dedicou o jornal O Estado de S. Paulo quando ele morreu, em 1898:

“O dr. Antonio Bento de Souza e Castro, o popularíssimo Antonio Bento das lutas pela abolição, faleceu ontem, nesta capital (…). Não era um brasileiro ilustre. Estudou e formou-se na nossa Faculdade de Direito, seguiu, logo depois de formado, a carreira da magistratura, dedicou-se por vezes ao jornalismo, mas, nem na Faculdade, nem na magistratura, nem no jornalismo conseguiu salientar-se. Não revelou jamais dotes de inteligência e seu espírito era notavelmente inculto. A ouvi-lo falar (falava como um homem rude do sertão) ou a ler o que ele publicava nos seus efêmeros jornais de combate (era deploravelmente incorreto e quase nunca sabia nada além da agressão pessoal ao adversário), ninguém diria que ele era um homem que tinha se sentado durante cinco anos nos bancos de um estabelecimento de ensino superior. Entretanto, o seu nome se fez célebre e glorioso em todo o Brasil e justamente célebre e justamente glorioso.”

Membro da Loja Maçônica Piratininga, provedor da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios e participante ativo nas confrarias religiosas negras de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e Santo Elesbão, Antonio Bento, rompendo barreiras étnicas e sociais, conseguiu reunir os poderosos e a gente do povo numa rede clandestina de solidariedade.

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Jornal de 1887 “Imprensa Evangelica”.

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N-01 A Redempção.

 

O movimento dos Caifazes tornou-se o elemento inédito do abolicionismo em São Paulo, na década de 1880. Dele, faziam parte magistrados, advogados, chefes de polícia, parlamentares, jornalistas, comerciantes, proprietários de caieiras e armazéns, controladores da Alfândega, empregados em serviços de navegação costeira e até mesmo membros de famílias de fazendeiros e corretores de café. Muitos destes pertenciam à poderosa organização da Maçonaria, que congregava ilustres membros da elite.
A eles cabia fornecer aos Caifazes o suporte financeiro para seus deslocamentos, fuga e acoitamento dos escravos foragidos, o pagamento das custas dos processos para obter sua libertação ou aquisição de carta de alforria, e ainda providenciar colocação aos escravos resgatados como trabalhadores livres nas fazendas de café de outras regiões ou em pequenos serviços urbanos.

 

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Gazeta de Noticias 1882.

O Maçom

Antonio Bento deve ter sido iniciado na Loja Piratininga no período compreendido entre 1º de julho de 1867 e 7 de agosto de 1869, pois, após esta última data, a Loja adormeceu, e não há registros ou documentos históricos neste intervalo.

Em 19 de março de 1890, entrava no Saco de Propostas e Informações a seguinte proposta: “Propondo a elevação do Ir.’. Dr. Antonio Bento de Souza e Castro, Gr.’. 30.’., ao Gr.’. 33.’., com dispensa de metaes, não só jóias, mas também patentes, porque: Antonio Bento é um vulto histórico; seu nome honra a Maçonaria Brasileira, que nele tem o mais arrojado interprete do art. 3º da Constituição, que estabelece  a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Ele tem recursos para pagar os metaes, mas a graça deve ser absolutamente isenta dele, ao contrário a elevação não constituirá o reconhecimento de altos serviços prestados à Ordem e à Humanidade (Artº 137 e 144 da Lei Administrativa). Não há necessidade de provas documentais, de que trata o Artº 145 da citada Lei, porque os seus efeitos estão registrados na História nacional contemporânea; estão nos anaes do antigo Senado descritas pelo ex-senador Christiano Otoni, que atribuiu as glórias da abolição a três entidades: ao ex-imperador 1º , ao visconde do Rio Branco e a Antonio Bento; estão nos anaes da Câmara dos Deputados apreciados por Joaquim Nabuco; estão em toda imprensa da Capital Federal e do Brasil; estão, enfim, na consciência nacional.

Antonio Bento foi casado com D. Benedita Amélia de Souza e Castro, paulistana, filha de Brandino Antonio Gonçalves e de D. Marinha Jesuína da Conceição, com quem teve quatro filhos: Bento, Antonio Bento, Eucharides  e Joab.

Algumas palavras resumem parte de sua história, pois seria difícil resumi-la toda, já que esbanja uma trajetória repleta de acontecimentos marcantes.

Benedita Amélia consolava os perseguidos, acolhia e protegia os que mais sofriam, dava exemplos diários de coragem e perseverança.

Junto com Batuíra, Anália Franco e outros que pertenciam ao grupo dos Abolicionistas e Republicanos, patrocinava a construção de abrigos e colégios para jovens, meninos e meninas abandonados.
Ao lado de Antonio Bento, enfrentou tudo com discrição, firmeza, dedicação e um profundo amor ao próximo.

Após o falecimento de Antonio Bento, muda-se da Rua do Carmo, juntamente com seu neto Bento de Souza e Castro, para sua chácara na Freguesia do Ó, continuando com seu trabalho benemerente, no qual dividia com os necessitados os frutos de suas economias. Em 21 de novembro de 1929 faleceu Benedita Amélia, uma mulher à frente do seu tempo.
No ano de 1888 ocorreu uma tumultuada eleição para a Mesa Administrativa, cujos membros, na sua maioria, não chegaram a tomar posse. Nesta eleição estava presente Antonio Bento de Souza e Castro, sucessor de Luiz Gama no Centro Abolicionista de São Paulo, provedor da Confraria de Nossa Senhora dos Remédios e protetor da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São Paulo.

O cargo do provedor da Confraria de Nossa Senhora dos Remédios (onde estava instalada a tipografia do jornal A Redenção) facilitou o contacto com os irmãos de várias irmandades. Apesar de serem entidades autônomas, havia fluente comunicação entre elas promovida pelos irmãos adeptos desse movimento.

Nos livros de assentamentos das Irmandades encontram-se os mesmos irmãos inscritos na Confraria dos Remédios, na Irmandade de São Benedito, na Irmandade de Santa Efigênia e Santo Elesbão, ao mesmo tempo ou alternadamente.

O cunho popular e ação ilegal dos Caifazes se faziam da seguinte maneira: infiltravam-se nas fazendas, utilizando os mais diversos disfarces, para conquistar a confiança dos escravos e convencê-los a fugir. Era a parte mais arriscada e mais difícil dessa empreitada, pois podiam ser denunciados ou descobertos e muitos escravos resistiam à fuga com medo dos castigos.

Estes foragidos vinham para São Paulo, onde permaneciam escondidos nas igrejas, nas casas particulares, e em estabelecimentos comerciais, cujos donos muitas vezes eram membros das irmandades.

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1881 Gazeta de Noticias.

De São Paulo partiam para Santos, a pé ou ajudados por ferroviários adeptos das idéias abolicionistas. Aí permaneciam mais uma vez escondidos até se dirigirem para o Quilombo do Jabaquara, em Santos.

Organizado em torno das irmandades negras, o povo mais humilde dava aos Caifazes um apoio invisível como o dos modestos empregados das estradas de ferro por ironia, a última novidade da modernidade destinada a promover a economia de exportação do café, garantindo seu transporte até o porto.

A ferrovia se tornou um dos principais instrumentos de organização das fugas de escravos, conduzidos de trem até a capital ou ao porto de Santos. Pessoas comuns, e mesmo os muitos imigrantes instalados na cidade a partir de 1875, cuidavam, espontaneamente, das necessidades cotidianas da população flutuante do Jabaquara, por onde, calcula-se, passaram cerca de 10.000 escravos fugidos.

A negra Brandina, dona de uma pensão, e seu amásio, o português Santos Garrafão, empregado numa casa de comércio, eram algumas das figuras populares que se destacaram no cenário abolicionista. O casal mantinha um pequeno quilombo na Ponta da Praia e se ocupava de garantir alimentação e cuidados de saúde na Santa Casa de Misericórdia para os refugiados do Jabaquara. Garrafão era também um dos principais articuladores da ação dos Caifazes de Antonio Bento em São Paulo com os abolicionistas santistas.

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Jornal Baiano 1881 sobre o não apoio a publicações sobre fuga de escravos.

Ao mesmo tempo em que contribuíram para desorganizar a economia escravocrata pelo confisco da mão-de-obra escrava e a inserção dos libertos no mercado do trabalho assalariado, os Caifazes marcaram a mentalidade de uma época. Esta é a característica mais significativa e revolucionária do movimento dos Caifazes de Antonio Bento, que representou em São Paulo antes uma conquista de todo o povo paulistano e também dos escravos do que uma concessão do poder imperial.

Luís Gonzaga Pinto da Gama
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                                                                                                   Luís Gonzaga Pinto da Gama.

 

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador (BA) a 21 de junho de 1830 e morreu em São Paulo a 24 de agosto de 1882.

Membro ativo e várias vezes venerável da Loja América.

Seu pai era um fidalgo português, estróina, que em 1840 vendeu o próprio filho a um traficante de escravos, para pagar dívidas de jogo e seguiu para o Rio de Janeiro de onde foi conduzido a São Paulo.

Sobre sua mãe, cuja figura mais tarde seria mitificada pelo Movimento Negro, Gama registrou, numa carta autobiográfica que enviou em 1880 a Lúcio de Mendonça:

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.

Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.

Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada de malungos desordeiros, em uma “casa de dar fortuna”, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados’ fossem mandados pôr fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela.

Sobre o pai, Gama omitiu, na mesma carta, o nome:

Meu pai não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo e pertencia a uma das principais famílias da Bahia de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.

Ele foi rico; e nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837.Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e reduzido a uma pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luís Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem, na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho “Saraiva”.

Na carta, descreve assim seu nascimento e primeira infância:

Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da Rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, oito anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.

A alma de Luiz Gama era tão pura e generosa que jamais se permitiu revelar, a quem quer que seja, o nome de seu pai, que se cobriu de opróbrio com este gesto insólito e monstruoso. Já em 1848, Luiz Gama não era mais escravo, conseguindo fugir do seu último “ senhor “, uma vez que carregava consigo documentos comprobatórios de sua condição de negro liberto, com os quais lhe é permitido assentar praça no Exército Brasileiro, quando em 1854 alcança o posto de cabo graduado.

O abolicionista negro teve sua ascensão social vinculada ao fato de deixar a condição de escravo e também à sua entrada, em 1848, para a Força Pública da Província ou Corpo de Força de Linha, instituição que foi criada pelo decreto de 22-01-1820.

Esta era composta do Corpo de Pedestres e da Companhia de Caçadores, aos quais estavam engajados os praças da guarda policial, e tendo por fim guarnecer as fortalezas e os destacamentos das Províncias na tentativa de evitar qualquer tipo de rebelião, comum na época, contra as Cortes Portuguesas.

Sofreu modificações em sua organização interna em 1831, 1835 e 1846, porém seu objetivo principal continuou sendo manter a lei e a ordem, seja com relação a revoltas e badernas, seja na destruição de quilombos e captura de escravos.

Criado em 1831, o Corpo de Municipais Permanentes da cidade de São Paulo tinha as mesmas atribuições gerais acima descritas e era uma milícia bem disciplinada, embora em 1846 fosse mal paga, demorassem as promoções e estivessem em más condições os equipamentos e as instalações.

Por insistência de Lúcio de Mendonça, advogado e amigo, Luiz Gama escreveu uma carta autobiográfica. Foi como soldado que ele conquistou sua liberdade. Entretanto, não ficou satisfeito com apenas esta vitória, seguiu em busca do desenvolvimento intelectual, único espaço de ascensão social permitido pela sociedade escravista. Para isso, atuava concomitante como copista para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto e como ordenança no gabinete do Conselheiro Furtado de Mendonça.

Luiz da Gama trazia no sangue o temperamento de negro rebelde, herdado certamente de sua mãe, Luiza Mahin, tanto é que por “ atos de insubordinação “ acabou por dar baixa no serviço militar, atos, que no seu entender, praticou com consciência e altivez na defesa da sua própria dignidade de criatura humana .
No ano de 1854 teve baixa da Força Pública por insubordinação e em 1856 foi nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, funções das quais era afastado por força de perseguições racistas e políticas movidas pelo seus detratores, que se encastelavam no Partido Conservador, por não tolerarem as inclinações liberais e as suas atividades em favor dos negros escravizados e oprimidos.

Luiz Gama formou-se em direito, conseguindo com talento, coragem e obstinação libertar mais de quinhentos escravos .

É dessa época que se projeta a sua fama de orador arrebatado, impetuoso e intrépido quando se punha diante de uma causa nobre, fazendo do jornalismo e da tribuna um poderoso instrumento com o qual vergastava os exploradores do suor alheio e os inimigos da humanidade .
Foi ele que brandiu a célebre frase que afirmava de modo peremptório que “ aquele negro que mata alguém que deseja mantê-lo escravo, seja em qualquer circunstância, mata em legítima defesa ! “.

Segundo Américo Palha, estas palavras de fogo foram proferidas de forma corajosa, da tribuna do Tribunal do Júri .
De outra vez, nessas pugnas homéricas em que se metia em defesa dos negros escravos, Luiz Gama depara com o temido José Bonifácio, o moço, como seu adversário no júri popular.

Sem demonstrar o menor temor consegue estrondosa vitória que o permitiu libertar mais de cem negros escravos.
Em 1859, publicou seu único livro de poesias.

Em 1868, ano em que ocorreu a queda do gabinete chefiado pelo liberal Zacarias de Góes e Vasconcelos, foi demitido, de acordo com Lúcio de Mendonça, a bem do serviço público. O governo de D. Pedro II patrocinava a política de favorecimentos pessoais e a sucessão freqüente de gabinetes com a rotação de partidos.

A despeito da presença constante do imperador na vida política do país, essas trocas não comunicavam à população um sentimento de continuidade, pois a cada gabinete mudava-se deste os membros da Corte até os funcionários dos distritos.

Como Gama tinha vínculos, no inicio de sua carreira, com os membros do partido Liberal, com o qual se identificou até o surgimento do partido republicano, sofreu as conseqüências daquela política personalista colocando a nu em sua narrativa as características non sense das práticas consideradas “normais” nas relações sociais do império.

O mundo que pode ser revelado e pressentido a partir da autobiografia de Gama nos coloca frente à frente com o escândalo dos problemas morais e ideológicos da monarquia escravista em crise.

Ao longo de sua vida ele colaborou em diversos periódicos e atuou como rábula junto ao fórum de São Paulo. Alijado do serviço público, dedicou-se à imprensa, trabalhando em diversos jornais satíricos de São Paulo, e à atividade de rábula, na qual sobressaiu-se por defender causas em favor de pessoas escravizadas. Sua atuação na defesa de escravos foi muito ampla.

No âmbito jurídico tanto buscava provar que os negros haviam entrado no país após a proibição do tráfico – 1850 – como defendia aqueles que possuindo um pecúlio esbarravam na intransigência dos seus senhores, que não queriam aceitar a liberdade, e, também patrocinava alforrias condicionais.

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Jornal Gazeta da Tarde 1881 RJ.

Na imprensa denunciava a escravidão como fator de degradação do ser humano e da sociedade. Esta, tendo-a por alicerce, centrava sua economia, política, e cultura na desigualdade entre os homens e na sua justificação a partir dos conceitos de inferioridade e superioridade aplicados às relações sociais, o que feria a perspectiva humanista que Gama tinha das relações sociais.

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Jornal Correio Paulistano 24 de Ag de 1882 um pouco antes de seu falecimento.

Após longo período doente, Luiz Gama faleceu a 24 de agosto de 1882 na cidade de São Paulo.

A descrição de seu enterro feita por Raul Pompéia patenteou a dimensão da importância das atividades desenvolvidas por ele na cidade.

A presença de brancos e negros, pobres e ricos, moços e velhos, transformou em ato público o que deveria ter sido apenas um sepultamento.

Naquele mesmo momento, Gama tornou-se símbolo do movimento abolicionista paulista e de seu radicalismo.

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1888 Jornal a Província do Espirito Santo Raul Pompéia assim se referiu a Luis Gama.

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Jornal Brazilian Times 1869;

1882-HOMENA

Gazeta da Tarde 1882.

 

Em 31 de dezembro de 1870, o Correio Paulistano publicava a seguinte nota:

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Tributo de consideração – Comunicam-nos o seguinte:

“Os amigos do prestante cidadão e incansável democrata Luiz Gonzaga Pinto da Gama, como devida homenagem aos méritos e às virtudes cívicas que o caracterizam vão quotizar-se entre si, fazê-lo retratar, e distribuir seu retrato entre tantos quanto prezam e admiram a honra, os talentos, a alma republicana e dedicação patriótica de tão benemérito quanto obscuro filho do povo.

Esse fato servirá igualmente para perpetuar o glorioso triunfo na defesa que fez ele de si próprio, ante o ilustrado Tribunal do Júri da briosa capital de São Paulo, reunido no 28 de dezembro do presente ano de 1870 para julgar do iníquo processo que lhe foi há um ano engendrado sob o fútil pretexto, mas com o propósito prudente de afastá-lo da brilhante, posto que espinhosa posição que ocupa na sociedade como advogado gratuito das causas de liberdade em toda a província de São Paulo.”

Essa homenagem prestada por parcela da alta sociedade da época ao rábula e poeta Luiz Gama, talvez hoje mais conhecido por suas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino do que por sua atuação no foro, foi o epílogo de luta encarniçada travada por ele, nas barras dos tribunais e na imprensa, contra o juiz municipal Rêgo Freitas, o mesmo que empresta seu nome à rua bastante conhecida no Centro de São Paulo. Esta nota quer celebrar a memória desse causídico, cujo falecimento completa 124 anos nesta sexta-feira, 25 de agosto de 2006.

A origem da querela está numa ação de liberdade promovida por Luiz Gama em favor do africano Jacinto, escravo fugido da Comarca de Jaguari, na Província de Minas Gerais, e que buscava sua libertação em juízo, sob o fundamento de que aportara no Império do Brasil após 7 de novembro de 1831, data em que se promulgou a Lei Feijó, que proibira o tráfico internacional de escravos.

A primeira formalidade num processo desse gênero era obter-se o depósito do escravo, que assim deixava de ficar sob o poder de seu senhor e, geralmente, passava à responsabilidade de uma pessoa livre, de idoneidade reconhecida pelo juiz, o que perdurava durante toda a discussão judicial. Uma vez concedido o depósito, passava-se à instrução do processo, a fim de se apurar a data em que o escravo chegara ao país, e, por derradeiro, à análise do mérito da demanda.

O pedido de depósito do negro Jacinto já fora indeferido duas vezes por Rêgo Freitas, sob o argumento de que o foro competente para conhecer da ação era o do domicílio do senhor do escravo, ou seja, a Comarca de Jaguari, na Província de Minas Gerais. Luiz Gama, no entanto, não se deu por batido por esse empecilho processual e voltou a carga, com a contundência com que ficou famoso na imprensa e nas lides forenses.

Considerando que o despacho exarado por Rêgo Freitas seria “ofensivo da lei”, pediu a revisão dessa decisão, instando esse magistrado a cumprir “seu rigoroso dever”, asseverando que nada obstante o “estúpido emperramento” com que lutava, tinha a “coragem e moralidade” para manter o “juízo em sua posição legal” e arrematava seu virulento petitório, requerendo ao juiz que “reconsiderasse o seu fútil despacho”.

A ousadia do rábula, que buliu com quem não devia, foi recompensada de pronto: amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo havia 12 anos, foi demitido do cargo sob a acusação de que tratara de maneira inconveniente e desrespeitosa o juiz municipal, ao qual, no entanto, não estava subordinado hierarquicamente. Além disso, logo a notícia chegou ao parquet, abriu-se processo contra ele por injúria e difamação, crimes pelos quais foi levado à julgamento perante o Tribunal do Júri em 28 de dezembro de 1870.

No entanto, nenhuma dessas represálias surtiu o efeito escoimado: sem o emprego na Secretaria de Polícia de São Paulo, Luiz Gama passou a dedicar-se integralmente à advocacia, de onde passou a tirar o sustento seu e de sua família, conquistando posição de destaque no foro, sobretudo nas ações de liberdade na Comarca da Capital e também em outras do interior da Província.

Por fim, sua brilhante autodefesa perante o Tribunal do Júri e a conseqüente absolvição, celebradas no anúncio do Correio Paulistano que abre este panegírico, valeram como desagravo público pelos dissabores que sofrera por sua destemida atuação em juízo e certamente ajudaram-lhe a construir sua reputação como advogado combativo, coroando a defesa intransigente que fizera dos interesses do escravo que assistia em juízo, como dá conta o Correio Paulistano:

“A importância do processo pelas circunstâncias especiais que o rodeavam, quer pela natureza dos fatos de onde originou-se (uma questão de libertação de africano livre), quer pelas condições sociais do réu e do ofendido, despertou a atenção pública fazendo com que o tribunal regorgitasse de espectadores.

O sr. Luiz Gama foi absolvido por unanimidade de votos.

Por mais de uma vez, durante a defesa, foi a voz do réu coberta de aplausos, sendo saudado por uma roda de palmas por parte dos espectadores ao concluir seu discurso.

Depois de encerrada a sessão, para mais de cem cidadãos acompanharam o Sr. Gama desde a sala do júri até sua residência.” (grifos nossos)

O Maçom

 

Sobre sua experiência maçônica sabemos que foi filiado à Loja União e Tranquilidade
nº 2 no Rio de Janeiro (BARATA,1999: 124).

A documentação maçônica produzida pelo Boletim do Grande Oriente do Brasil dá conta de que em 12 de fevereiro de 1897 Patrocínio foi citado na apuração Geral da Eleição de Grão-Mestre Adjunto.

Ele teria concorrido ao cargo de Grão-Mestre e recebido seis votos, sendo três da Loja João Caetano, dois da Loja Aurora Escocesa e um da Loja Ganganelli do Rio. Mesmo não ganhando a eleição, Patrocínio dava sinais de que sua intenção era atingir os altos cargos maçônicos.
Ocupar cargos estratégicos na maçonaria tinha também sentido político e social, já que
os nossos maçons mulatos perceberam que ao se tornarem lideranças em suas Lojas teriam maiores facilidades de encampar suas bandeiras e articular apoio para colocá-las em prática fora do círculo maçônico.

Francisco Gê Acaiaba Brandão Montezuma foi expressão máxima neste quesito. Mulato, baiano e exímio articulador político do Império tratou de ampliar seus espaços de influência compondo a cúpula responsável pela criação do Supremo Conselho ou
Grande Oriente, em 5 de agosto de 1835 (MOREL E SOUZA, 2008: 142-143).

Nela Montezuma exerceu o cargo de Grão-Mestre e ajudou a difundir o rito Escocês Antigo e Aceito, o segundo mais seguido pelas Lojas maçônicas brasileiras, o primeiro era o rito Francês Moderno. (MOREL E SOUZA, 2008:143).

Montezuma se destacava em sua “carreira” maçônica até ter sido alvo de acusações duras vindas do grupo formado e liderado por José Bonifácio. Montezuma estaria fazendo cobranças indevidas aos irmãos, que ainda não teriam sido efetivamente aceitos na sociedade além disso, teria manipulado as eleições e usando a maçonaria para negociar cargos públicos. (MOREL E SOUZA, 2008: 143).

Embora tais acusações nunca tenham sido comprovadas, o maçom acabou banido da Ordem e sua imagem manchada.

Se essas acusações procediam ou não, de fato não há documentação que prove, mas de qualquer maneira, fica a ideia de que a maçonaria era espaço multifacetado que podia ser usado das mais diferentes maneiras segundo os interesses políticos de suas lideranças. (COLUSSI, 2000: 302).

Luiz Gama soube como ninguém articular seus interesses abolicionistas e republicanos
com seus compromissos maçônicos na Loja América, a qual figurava desde 1870.

No mesmo ano em que foi filiado à oficina, Gama se destacou como membro da comissão para manumissão de africanos ilegalmente escravizados e como 2º vigilante, terceiro cargo mais importante dentro da hierarquia maçônica. (CARVALHO, 1988: 69).

Era função do 2º vigilante substituir o venerável na ausência do 1º vigilante ou no
impedimento deste.

Assim entendia-se que desempenhar o cargo de 2º vigilante em determinadas sessões poderia equivaler ao cargo de venerável. A escolha do 1º e do 2º vigilante era tão importante, quanto à definição do venerável.

Eram tarefas do 2º vigilante: Conservar a ordem e o silêncio em sua coluna durante os trabalhos;

Não permitir que os irmãos de sua coluna passem para a outra sem a devida permissão do venerável;

Instruir os aprendizes, ensinando-lhes os rudimentos do Grau – em sua Filosofia, História, Simbologia e Ritualística […]. (CARVALHO, 1988:70)

O funcionamento da Loja dependia da distribuição desses cargos. Passada a eleição e o
ritual de posse, os irmãos escolhidos assumiam seus postos e deliberavam sobre as sessões maçônicas.

Na eleição de 1874, foi quando Luiz Gama assumiu a vaga de venerável pela primeira vez, repetindo a experiência nos anos de 1876, 1878, 1879, 1880, 1881 e 1882.

Sua atuação na Loja América era conhecida dentro e fora do círculo maçônico.

Ele nunca escondeu sua filiação à maçonaria e, na ocasião de sua demissão, do cargo de amanuense, tratou de evocá-la: “sou agente da Loja América em questão de manumissão, e, com o eficaz apoio dela, tenho promovido muitas ações perante os tribunais”.
.
Ao revelar sua identidade maçônica Luiz Gama estava preocupado em informar seus
inimigos de que não estava sozinho em suas ações e que contava com o apoio e a proteção da maçonaria.

Esse “apadrinhamento” maçônico serviu de esteio às bandeiras encampadas por Luiz Gama e, ao mesmo tempo assegurou ao maçom negro a possibilidade de exercer sua cidadania.

Foi por meio de seus talentos e virtudes que pode ocupar os cargos mais importantes na Loja.

A trajetória pessoal de Luiz Gama diferia dos demais maçons mulatos de que tratamos até aqui.

Gama viveu na pele a experiência da escravidão, condição ao qual se viu imerso pela ambição e descaso de seu próprio pai, que o vendeu como escravo a fim de quitar suas dívidas com jogo.

Luiz Gama nasceu na Bahia em 1830, era filho de uma africana livre e de um português remediado. (AZEVEDO, 1999:35).

Além de ter que lidar com o preconceito de cor como os outros mulatos, Gama ainda padecia com a experiência de ter vivido por 8 anos na condição de cativo, dois estigmas sociais que pareciam não ter relevância em espaço maçônico.

A maçonaria era vista não só como escada para ascensão social e simbólica, mas
também como espaço para instrumentalizar bandeiras políticas e sociais.

Socialmente marginalizados, os mulatos Saldanha Marinho, José do Patrocínio, Eutíquio Pereira da Rocha, José Ferreira de Menezes e Luiz Gama encontraram na maçonaria espaço para a sobrevivência social e moral, que muitas vezes não encontraram na vida profana.

 

Relação entre o Abolicionismo e a Maçonaria

As possibilidades vislumbradas pela maçonaria logo exerceriam atração sobre nossos

mulatos Francisco Gê Acaiaba Brandão de Montezuma (1794-1870), Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895), José Ferreira de Meneses (184?-1881)3 , Luiz Gama (1830-1882), José do Patrocínio (1853-1905), Eutíquio Pereira da Rocha (1820-1880) e tantos outros, cujas identidades étnicas maçônicas não nos foram reveladas.

O fato é que para esses mulatos constantemente preocupados em estarem na vanguarda
das novas correntes de pensamento, tais como o republicanismo, anticlericalismo e o abolicionismo, de inspiração europeia e norte-americana, a maçonaria serviu como esteio as suas ambições.

Ela aglutinava pessoas com posições políticas distintas, mas era espaço para o diálogo, ambiente propício à discussão. Assim sendo, esses sujeitos trataram logo de se incorporarem a essa organização.

Lá não se deparariam com as barreiras sociais que experimentaram na vida profana , mas sim, encontrariam espaço para encampar suas bandeiras políticas e sociais, já que “a maçonaria era lugar da circulação de ideias e aprendizado de práticas modernas tais como: a escolha dos associados, eleição para os cargos maçônicos, o debate entre os pares e a deliberação”. (MOREL E SOUZA, 2008: 45).
Não há dúvidas de que para os mulatos compor o quadro de uma Loja maçônica tinha significado muito mais amplo que para os demais membros, dado o fato de que esses sujeitos invariavelmente estiveram a margens dos outros espaços de sociabilidade existentes, o que aparentemente não se reproduziu no círculo maçônico onde a cor do irmão não era um tema em questão.

Ao analisar a trajetória dos mulatos abolicionistas Luiz Gama, André Rebouças e José
do Patrocínio,  entendemos que a experiência de preconceito de cor vivida por esses homens teria os impulsionado a se lançarem mais incisivamente na ação abolicionista. (ALONSO, 2012: 40).

Do mesmo modo, podemos pensar que as ambições maçônicas de nossos mulatos eram também fruto do preconceito de cor.

Eles buscavam se firmar como lideranças maçônicas a fim de compensar a inatividade de outros espaços de sociabilidade.

A experiência de rejeição de Luiz Gama na Academia de Direito de São Paulo ilustra
esse sentimento. Foram inúmeras as ocasiões em que Gama mencionou tal episódio com certa amargura, lançando mão da frase “a inteligência repele pergaminhos”. Tal sensação de mutilação social, contudo, Luiz Gama não carregou consigo, compartilhou com o grande público via artigos de jornais ou através de seus poemas, tais como Borradada e Quem sou eu?(FERREIRA, 2011: 39) publicados, em seu único livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, de 1859, que fora reeditado dois anos depois. (FERREIRA, 2011:37-38).

Com Patrocínio as manifestações de preconceito não foram diferentes, ainda que o mulato, diferente do ex-escravo, contasse com uma pequena rede de contatos, herdada de seu pai.

Valendo-se dessa rede Patrocínio ingressou na Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro, mas  que por razões obscuras acabou obtendo apenas o diploma de farmacêutico. Outro episódio de preconceito vivido por Patrocínio ocorreu em 1887, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, onde ouviu um grito vindo da plateia “cala a boca, negro!” e respondera “quando Deus me deu a cor de Otelo foi para que eu tivesse ciúmes da minha raça!” (ALONSO, 2012: 40-41).

Os exemplos mencionados acima indicam que nossos mulatos brigaram incessantemente por espaço na sociedade dispondo das armas que tinham, enquanto que na maçonaria sentiam que podiam baixar guarda.

Nela, não se viam alvo dos mesmos embargos que estavam sujeitos no mundo profano. Esse universo maçônico parecia ser bastante atraente também para aqueles que almejavam usar a maçonaria como esteio para suas carreiras e bandeiras.

Segundo Margaret Jacob o iluminismo maçônico propunha que a “igualdade natural”
fosse substituída pelo mérito individual e direitos humanos (JACOB, 1991; 154), assim
sendo, seria proibido em espaço maçônico haver distinção por raça, cor, religião ou origem social entre os irmãos, todos deveriam ser vistos como iguais e quando iniciados a maçonaria, os irmãos deveriam deixar para trás as diferenças impostas pela sociedade e seguir adiante considerando tão somente os talentos e virtudes dos irmãos.

Sendo assim, a posição ou prestígio que por ventura o irmão viesse a adquirir ao longo de sua trajetória maçônica dependeria estritamente de suas habilidades. Permitindo que um sujeito desprovido de posses no mundo profano pudesse no interior do círculo maçônico ocupar cargos de prestígios, tais como o de venerável, primeiro vigilante, segundo vigilante, orador e tesoureiro.

No interior da maçonaria a posição hierárquica de um indivíduo era determinada
segundo os graus maçônicos, seguido de acordo com os ritos adotados por suas respectivas.

Lojas. O rito Escocês Moderno e Aceito, trazido e difundido por Montezuma, era o mais  professado. Dividido em 33 graus, cada qual conferia um nível de sabedoria e status ao irmão. As possibilidades de ocupar cargos dentro da Loja também eram determinadas pelos graus maçônicos, um maçom recém-iniciado não poderia concorrer aos cargos de importância na Oficina: venerável, 1ª e 2ª vigilante, orador, tesoureiro, etc7
Esse conjunto de valores foi convenientemente incorporado por nossos mulatos que
entendiam então que a maçonaria era espaço de privilégio acessível a um grupo restrito de pessoas e que tal sociabilidade poderia ajudá-los a encampar suas bandeiras sociais e
políticas. (MOREL e SOUZA, 2008: 18).

Após suas respectivas iniciações e cientes do espaço que ocupavam esses homens não deixaram de instrumentalizar a maçonaria em benefício de suas ambições políticas e sociais.

O Oriente dos Beneditinos reuniu Lojas que estiveram às voltas com importantes temas políticos: bateu de frente contra a autoridade da Igreja católica; lutou pela secularização
do Estado e dos cemitérios públicos; foram também os maçons desta ordem “os primeiros do continente americano a declarar seu apoio à medida anti-racista tomada pelo Grande Oriente francês”. (AZEVEDO, 2011: 244)

A discussão do racismo maçônico girava em torno das Lojas maçônicas americanas,
que rompiam com os princípios universalizantes e igualitários da maçonaria ao recusar o ingresso de negros na sociedade. As Ordens maçônicas americanas impunham medidas raciais por acreditarem que os brancos eram superiores aos negros, motivo mais que suficiente para que esses sujeitos não se cruzassem em espaço maçônico, a exemplo do que já ocorria no espaço profano.

A norma de procedimento maçônico adotado em 1851 pela Grande Loja de Nova Iorque ilustra bem esse pensamento:

Não é adequado iniciar nas nossas Lojas, pessoas da raça Negra; e sua
exclusão está de acordo com a Lei Maçônica e as Antigas Obrigações
e regulamentos, por causa de sua condição social deprimente; a falta
geral de inteligência, que os impossibilita, como um corpo, a trabalhar
ou adornar a Maçonaria; a impropriedade em fazê-los nossos iguais
em algum lugar, quando pela sua condição social, e as circunstâncias
pelas quais cada um quase se liga a eles, não acontecendo o mesmo
com outros, por não terem de uma maneira geral NASCIDOS
LIVRES. (CARVALHO; 1999; 24)

As Lojas maçônicas americanas, sobretudo, as do sul dos Estados Unidos reproduziam em espaço maçônico a segregação racial vigente na sociedade americana, subvertendo os princípios universais da maçonaria em defesa da igualdade e fraternidade entre irmãos, independentemente da cor e origem. Isso teria gerado uma mobilização de diversas Ordens Internacionais que estavam preocupadas com o modo como as Lojas
americanas agiam em relação aos seus iniciados.

Fundador da Ordem dos Beneditinos e seu Grão-Mestre, o mulato Saldanha Marinho tinha plenos poderes para impor suas vontades frente à Ordem dos Beneditinos, de modo que a escolha de permanecer ao lado do Grande Oriente Francês, se por um lado, denotava o desejo de fazer cumprir os verdadeiros princípios maçônicos igualdade e fraternidade, do outro lado, demonstrava haver a vontade de defender a maçonaria como espaço de exercício de cidadania dos mulatos. Pois se as Lojas norte-americanas foram eficientes em instituir o racismo em suas Oficinas. Como não supor que tais distorções não tomassem proporções internacionais e atingissem as Ordens e Lojas maçônicas brasileiras?

A essa altura a maçonaria no Brasil havia se transformado em espaço de construção da cidadania de mulatos.O grande articulador da Ordem dos Beneditinos, Joaquim Saldanha Marinho, nasceu na cidade de Olinda, em 1816, era filho do Capitão de Artilharia Pantaleão Ferreira dos Santos e de Dona Ágata Joaquim Saldanha. Órfão de pai com apenas um ano de idade. Sua carreira foi profícua, cursou direito em Pernambuco e ingressou na magistratura aos 21 anos de idade. Foi eleito deputado na Câmara Geral da Província do Ceará em 1847 e no ano seguinte começou a advogar. Assim como os demais maçons, Saldanha enveredou-se pelos caminhos das redações a fim de tornar públicas suas ideias. (ASLAN, 1973: 349).

Saldanha Marinho era republicano, abolicionista, anticlerical e encampou diversas
bandeiras em torno da maçonaria. Saiu em defesa do Estado laico e do direito de liberdade de
culto, assunto esse que era também de foro íntimo, já que sua mãe era leitora de textos
evangélicos. (VIEIRA; 1929)
Saldanha Marinho publicou muitos artigos criticando a Igreja. Sob o pseudônimo de
Ganganelli escreveu no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro um conjunto de artigos
denominados “A Igreja e o Estado”, em 1873. Nele, Marinho desferiu críticas à instituição
que proibia não católicos e maçons de serem enterrados nos cemitérios públicos
administrados por ela. A crítica à Igreja não se limitava a imprensa, entre 1879 e 1881,durante a sua gestão como deputado, defendeu o casamento civil leigo e a secularização dos cemitérios. (ASLAN, 1973: 352)

Suas ações não pararam por aí como advogado, Saldanha Marinho pôde manifestar-se frente à questão escravista. Sobre o assunto Saldanha Marinho demonstrou apoio aos advogados que recorriam a lei de 7 de novembro de 1831 para defenderem os africanos ilegalmente escravizados e, também condenava os juízes e tribunais que não investigavam se esses africanos haviam aportado no país antes ou depois de 1831. (MARINHO, 1885: 144)

Saldanha Marinho, assim como Luiz Gama, era partidário da abolição imediata “o único
caminho a seguir nas condições gravíssimas em que se acha o paiz, é a adopção de uma lei que sem rodeios, sem disfarces, diga em respeito a verdade e ao direito – fica extinta a
escravidão no Brazil” (MARINHO, 1885:144). Suas posições consideradas radicais podiam ser observadas no exercício de suas funções. Paralelamente a carreira política Saldanha Marinho atuou como advogado na Rua do Rosário, nª 41, na Corte, atendendo a diferentes causas .

E uma delas chamou-nos particular atenção, por reforçar justamente seu posicionamento radical em relação à escravidão.

Saldanha Marinho havia aceitado defender o padeiro João de Mattos, sujeito que ostentava uma extensa ficha criminal, onde lhe pesavam as acusações de falsificação de cartas de alforrias e de facilitar a fuga de vários escravos. A intenção de Mattos era fazer com que esses escravos, dispondo de cartas de alforria conseguissem para serem empregados nas fazendas do interior como libertos (MATTOS, 2004: 245).

Valendo-se da mesma estratégia, João de Mattos percorreu várias cidades, acumulando crimes contra a propriedade escrava. Primeiro passou por São Bernardo onde organizou um levante e foi preso por isso, mas de onde conseguiu escapar seguindo para a cidade de Santos. Em Santos organizou novas fugas de escravos, que trabalhavam em cinco padarias distintas, forjou novas cartas de alforria para o mesmo fim.

Preso novamente por mais três meses após a liberdade para São Paulo, em 1877 e, por último mudou-se para a Corte. Ali seus trabalhos foram interrompidos novamente, por
um delator, que recebeu 100$000 réis para informar a polícia sobre o paradeiro do padeiro.(MATTOS, 2004: 246)
Diante da extensa ficha criminal do padeiro não é difícil imaginar que a causa aceita por Saldanha Marinho lhe tomaria muito do seu tempo e lhe causaria transtornos perante a sociedade escravista. É também de se supor que Saldanha Marinho não tenha cobrado nada  para defender tal causa. Tendo sido trabalhoso ou não, Marinho alcançou seus objetivos conseguindo libertar o padeiro da prisão. Assim, João de Mattos viraria mais uma página de sua vida conturbada, fundando em 1880, uma associação em defesa dos interesses dos padeiros, cujo lema era “Pão e Liberdade” (MATTOS, 2004; 250). Saldanha Marinho ao aceitar defender o padeiro abolicionista, “usurpador de escravos”, demonstrava não temer represálias de setores conservadores e ao mesmo tempo reforçava suas convicções abolicionistas.

O mesmo radicalismo que tomou Saldanha Marinho também podia ser sentido nas palavras e ações do padre Eutíquio Pereira da Rocha. A falta de informações mais precisas sobre a atuação do maçom não nos impede de especular sobre seu prestígio na Loja Harmonia. Sabemos que ele foi um dos editores chefes do jornal maçônico O Pelicano, de ampla circulação no Pará na década de 1870. (MONTEIRO, 2012: 71) Rocha não se limitou a atuar como redator do periódico, foi autor dos diversos artigos que foram publicados em vários jornais do Pará e da Bahia, sua terra natal, seus polêmicos escritos tiveram como principal alvo a Igreja católica. (VIEIRA, 1980: 175)

Embora fosse padre tornou-se um dos principais defensores do Estado laico e como maçom questionava a proibição da Igreja em enterrar não católicos e maçons nos cemitérios públicos. Assim como os outros maçons, Eutíquio Pereira da Rocha mobilizou a imprensa no Pará com a finalidade de atender seus interesses políticos. Rocha foi iniciado na Loja Harmonia logo após ter se mudado para Belém em 1850 e, em 1872 ocupou o cargo de editor chefe do jornal maçônico O Pelicano. Nesse jornal, Rocha encontrou espaço propício para criticar a Igreja e posicionar-se contra a escravidão. (MONTEIRO, 2012: 71)

O Pelicano era bissemanário e circulou em Belém. Nele foram publicadas com frequência notas registrando a libertação de escravos promovida pelas Lojas maçônicas no Pará “teve a entrada no templo o menor Antonio Aurora, a quem a nossa off.: quebrou as cadeias da escravidão, demonstrando assim a expansão do mais vivo regozijo, senão também os seus louváveis sentimentos” (MONTEIRO, 2012: 74).

A Loja Harmonia estava entre as sociedades financiadoras do jornal O Pelicano, daí podemos supor que o posicionamento do jornal estava em sintonia com as ideias de Rocha. Segundo ele o Império estava assentado sob três grandes problemas: a forma de governo, a escravidão e o Estado católico.

Ao defender o Estado laico Rocha viu sua vida mudar completamente. Nascido na
Bahia, em 1820, cursou o seminário e em 1850 se mudou para Belém para exercer a  presidência do Mosteiro Carmelita (VIEIRA, 1980: 175). Posição confortante que lhe foi
usurpada depois que desferiu com veemência críticas contra a Igreja. Eutíquio Pereira da Rocha era padre, mas isso não o impediu de seguir na contramão dos interesses da Igreja. No início da década de 1860, anos antes de estourar a Questão Religiosa, Rocha e
outros maçons vinham travando uma verdadeira guerra contra as autoridades religiosas, primeiro desferindo críticas dirigidas ao Bispo Dom Afonso de Morais Torres e depois contra o Bispo Dom Antonio de Macedo Costa (VIEIRA, 1980: 175). O padre saiu em defesa do Estado laico e da liberdade de culto, sendo por isso duramente penalizado pela Igreja, que não achava legítimo o ataque vir de um membro dela, que ainda estava aliado a sua principal inimiga, a maçonaria.

O padre colaborou com diversos jornais (Jornal do Amazonas, O Pelicano, O Velho Brado do Amazonas) e muitos de seus textos criticavam a Igreja. Seus artigos chamavam atenção por serem audaciosos e por não pouparem ninguém, nem mesmo o Papa. (VIEIRA,1980: 175).

Os textos de Eutíquio visavam criticar aspectos caros ao funcionamento da Igreja, como por exemplo, a proibição dos enterros de protestantes e maçons nos cemitérios públicos
administrados pela Igreja, mas em contrapartida suas críticas eram rebatidas pelo Bispo Dom Antonio de Macedo Costa com insultos raciais. Entre o alto escalão da Igreja o padre ficou conhecido como “cônego africano”. As ofensas pareciam não ter fim. Eutíquio, anos antes, desabafava, em nota publicada no jornal Grão-Pará de Belém em 25 de junho de 1852, “chamam-me de Africano, Cafre, Debochado, Tratante, Bêbado… tudo aceitei …”. (VIEIRA,1980: 175).
A audácia de Eutíquio em criticar o alto escalão da Igreja, lhe custou o afastamento de suas funções sacerdotais em 1866. Sua suspensão foi determinada pelo Bispo Dom Antonio de Macedo Costa, o mesmo que o ofendera com insultos racistas. Daquela data até o fim de seus dias, Rocha nunca mais voltaria a exercer o sacerdócio. O afastamento se tornou permanente, já que para retornar a exercer suas funções precisaria renegar a maçonaria. Eutíquio optou por morrer impenitente e maçom. Sua escolha de permanecer na maçonaria revelava o quanto a maçonaria podia ser um espaço de estabelecimento de privilégios e de proteção principalmente aos nossos mulatos. A suspensão de Rocha do sacerdócio era apenas mais um exemplo dessa experiência de rejeição social.

Mas, se a Igreja o rejeitava a maçonaria em contrapartida o apoiava, chegando mesmo
a transformá-lo em ícone da Loja, por sua atuação jornalística, abolicionista e anticlerical.  Rocha além de comandar O Pelicano, colaborou com outros jornais da época, A Boa Nova, O Grão-Pará e o Crepúsculo da Bahia. (VIEIRA, 1980: 176). Seus ensaios eram reconhecidos nos quatro cantos do Pará, por todas as Lojas do
entorno.

Depois de sua morte em 1880, cristalizou-se como “ícone da Maçonaria paraense” (MONTEIRO, 2012:71). Já em meados do século XX, mais especificamente em 1946, a cúpula maçônica da Loja Harmonia solicitou autorização da administração do cemitério, onde estavam depositados os restos mortais do maçom, a fim de transferi-lo para as dependências da Oficina. (MONTEIRO, 2012: 72).

Como não poderia ser diferente, esse episódio foi marcado com toda polpa e circunstância, com os maçons da referida Loja realizando uma grande procissão, que percorreu as principais ruas da cidade em direção a Loja Harmonia. Lá se encontram hoje os restos mortais do maçom. Os irmãos que acompanhavam o cortejo trataram de vestir seus aventais e trajes de cerimônias especiais. Mas, se não bastasse celebrar a posse dos restos mortais do ex-padre, os irmãos da Loja Harmonia nº8 pressionaram as autoridades municipais na tentativa de mudar o nome da Rua São Mateus para Rua Padre Eutíquio.

O resultado agradou os irmãos maçons que alcançaram seus objetivos e hoje é possível cruzarmos a Rua Padre Eutíquio no bairro do comércio em Belém. Enquanto a Loja Harmonia esforçava-se para preservar a memória do padre Eutíquio Pereira da Rocha, outros irmãos sucumbiam ao tempo esse era o caso do mulato maçom José Ferreira de Menezes. Seu nome sempre discretamente mencionado pela historiografia da abolição esconde a história de um sujeito multifacetado – advogado, jornalista, literato, promotor público, proprietário do jornal Gazeta da Tarde, cuja trajetória maçônica foi semelhante à de seus “irmãos” mulatos (PINTO, 2014: 19).

Ferreira de Menezes, nascido no Rio de Janeiro, passou uma temporada em São Paulo,
entre os anos de 1861 a 1866, onde cursou direito. Na Academia, o jovem despertou gosto
pela literatura e pelo teatro, como tantos outros poetas e literatos formados por lá. (PINTO,2014: 19).

Em paralelo as atividades culturais, Ferreira de Menezes atuou ao lado de seu congênere Luiz Gama com quem partilhava dos mesmos ideais abolicionistas e republicanos. Os laços de amizade construídos entre eles certamente foram fortalecidos pela experiência maçônica.

Na Loja América Ferreira de Menezes apoiou Luiz Gama em diversas causas de manumissão.

Mas, não foi na Loja América que José Ferreira de Menezes iniciou seus trabalhos maçônicos e sim na Loja Sete de Setembro e, em 1867, teria composto a comissão que homenagearia Saldanha Marinho , Grão-Mestre do Oriente do Vale dos Beneditinos. (PINTO, 2014: 47).

Foi nos bastidores da maçonaria que Ferreira de Menezes e Saldanha Marinho se conheceu, mas a relação de proximidade entre eles logo se estenderia para o mundo profano.

Saldanha Marinho era leitor do jornal Gazeta da Tarde de propriedade de
Ferreira de Menezes Além disso, ambos também aparecem como colaboradores da Revista Complexa, no ano de 1878. De volta a sua terra natal, Ferreira de Menezes manteve-se ligado a Loja América assumindo o cargo de representante da oficina no Rio de Janeiro, atitude incomum no círculo maçônico, normalmente, o irmão solicitava ser filiado a uma Loja na cidade de destino.

A Permuta muitas vezes se fazia entre as oficinas por meio de pranchas Ferreira de Menezes não desejava romper os laços de amizade que havia construído naquele espaço, por esse motivo optou por permanecer ligada a Loja América, não apenas  como membro honorário, mas, como membro efetivo, desempenhando função de relevo. Provavelmente sua relação de amizade com Luiz Gama tenha pesado em sua decisão e, possivelmente o cargo de representante da oficina oferecido a Ferreira de Menezes tenha sido negociado pela cúpula maçônica da qual Luiz Gama fazia parte. No ano de 1878, Ferreira de Menezes cumpria a seguinte determinação da Loja América: “a Loj:. encarrega o Ir:. Dr. José Ferreira de Menezes, Gr:.18 para iniciar e deferir o  juramento de Gr:.3 ao Ir:. João Chrystormo Ferreira Brandão que reside no Val:. do Rio de Janeiro” .

Pelas funções que desempenhou imaginamos que Ferreira de Menezes tenha de fato
deixado sua marca na Loja América. Mas quando retornou para o Rio de Janeiro, Ferreira de Menezes não deixou de ampliar sua rede de solidariedade tratando logo de estreitar laços com José Carlos do Patrocínio, outro maçom negro abolicionista, de quem se tornou sócio no jornal Gazeta da Tarde. (FERREIRA, 2011: 153).

José Carlos do Patrocínio nasceu em 1853, era filho de uma liberta quitandeira e de um vigário-fazendeiro, que nunca o reconheceu como filho. Ainda que tivesse vivido como bastardo, Patrocínio “herdou” de seu pai certa rede de influência que lhe assegurou ingresso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. (ALONSO, 2012: 40).

Pesquisa feita por Hamilton Ferreira Sampaio Junior.’.

 

 

Referências Bibliográficas

ALONSO, Ângela. Triangulo negro da abolição. In: Revista Ciência Hoje. nº 292 (maio)
2012, pp. 38-42.
ASLAN, Nicola. Pequenas biografias de grandes maçons brasileiros. Rio de Janeiro: Editora
Maçônica, 1973.
AZEVEDO, Célia Maria M. de. Maçonaria: história e historiografia. In: Revista USP, Dossiê
Sociabilidade de Massas e Identidades. nº32, (dez./jan./fev) 1996-97, pp.178-189.
AZEVEDO, Célia Maria M. de. Maçonaria, anti-racismo e cidadania: uma história de lutas e
debates transnacionais. São Paulo: Annablume, 2010.
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de
São Paulo. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social
da Cultura, 1999.
AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de
São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.
. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. “Cometas, Caifazes e o movimento abolicionista”. In: Escravos e cometas. Movimentos sociais na década da abolição. Tese de doutorado, Departamento de História, FFLCH/USP, 1991.
QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência (São Paulo: 1870-1890). São Paulo: Annablume, 2002.
SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos [1937]. São Vicente: Ed. Caudex Ltda., 1986.
Maria Lucia Montes é professora aposentada da USP e foi curadora da exposição “Os caifazes de Antonio Bento”, na Casa Bandeirista do Sítio da Ressaca, no Jabaquara (Secretaria Municipal de Cultura, São Paulo, 2008).
GAMA, Luís. Primeiras Trovas Burlescas e Outros Poemas (org. Lígia Ferreira). Sâo Paulo: Martins Fontes, 2000.
SILVA, J. Romão. Luiz Gama e suas Poesias Satíricas. Rio de Janeiro: Ed. Casa do Estudante do Brasil.

1DEMONER, Sônia Maria. História da Polícia Militar do Espírito Santo 1835 – 1985. Vitória: Departamento de Imprensa Oficial, 1985, p. 38 e seg.
2 MORSE, Richard. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difel, 1970, p. 108.

3 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1976, V. 1, p. 357.
4 SCHWARZ, Roberto. “Autobiografia de Luiz Gama.” NOVOS ESTUDOS CEBRAP. São Paulo, (25): outubro de 1989, p. 137.
5 POMPÉIA, Raul. Última Página na Vida de um Grande Homem. A GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: 03 de setembro de 1882.
– Veja livro “O orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo”. – de Elciene Azevedo – Campinas, Editora da Unicamp, 1999.

Museu Maçônico Paranaense.

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