
Conta-se que, em Hamelin, uma cidade alemã da Idade Média, uma figura misteriosa surgiu para libertar os moradores de uma praga de ratos.
Com uma flauta encantada, conduziu os roedores para fora dos muros.
Mas, ao ser enganada pelos habitantes que se recusaram a pagar pelo serviço, a Flautista voltou — e levou consigo todas as crianças, desaparecendo colina adentro.
A lenda atravessou séculos como um aviso: há um preço a se pagar quando se rompe com a memória e o pacto coletivo.
Em uma cidade antiga do Paraná, outra música tem soado — menos mítica, mais concreta.
Não é o som de uma flauta mágica, mas o barulho contínuo de reformas apressadas, escavadeiras, projetos “revitalizantes” que prometem devolver vida ao centro histórico.
A diferença é que, aqui, quem conduz a marcha é o próprio poder público.
E quem o segue, talvez sem perceber, são os moradores, comerciantes e visitantes seduzidos por uma promessa de progresso que, ao se aproximar, revela sua face dissonante.
Os chamados planos de revitalizações se apresentam como solução para o abandono — mas muitas vezes opera como apagamento.
O que deveria restaurar, descaracteriza.
O que prometia valorizar, simplifica, homogeneíza, moderniza ao ponto de romper o vínculo com o passado.
Fachadas coloniais são recobertas por rebocos frios; esquadrias de madeira são substituídas por alumínio; calçadas de pedra são niveladas em nome da fluidez urbana, enquanto o traçado antigo desaparece sob a tinta fresca.
A paisagem construída, feita de camadas sucessivas de história, vai sendo desfeita como se fosse um incômodo.
A autenticidade — essa que só o tempo é capaz de conferir — é trocada por uma estética genérica de cartão-postal, boa para fotos, ruim para a memória.
E o paradoxo se impõe: se, em Hamelin, a cidade perdeu suas crianças por não cumprir sua palavra, na cidade histórica do Paraná parece perder seus ancestrais por cumprir cegamente o plano.
Ao invés de proteger o que é único, entrega-se ao que é padrão.
Ao contrário da fábula, aqui não há uma Flautista misteriosa — somos nós mesmos que tocamos a melodia do esquecimento, convencidos de que é progresso.
Mas ainda há tempo.
Tempo de reavaliar, de ouvir a cidade antes de redesenhá-la.
Tempo de perceber que revitalizar não é maquiar, mas reanimar com respeito — com escuta, com cuidado, com memória.
Talvez ainda possamos silenciar essa flauta e retomar o compasso verdadeiro da história.
Para isso, é preciso reconhecer o caminho já trilhado — e decidir, juntos, se queremos continuar sendo conduzidos… ou se, enfim, aprenderemos a escutar o que cidade histórica do Paraná sussurra, silenciosamente, pelas frestas do tempo.