Mansa Musa O Sultão do Litoral

hamilton |10 fevereiro, 2024

Blog | Rastro Ancestral

Mansa Musa

O Sultão do Litoral

O Campo Grande local bem conhecido da cidade de Paranaguá representou, outrora, um papel importante na vida social da cidade nos séculos XVIII e XIX. No século XVII, foi oficialmente designado como “curral” do Conselho, ou melhor, potreiro da Câmara, nome dado devido à farta pastagem para bois e cavalos dos moradores da Vila de Paranaguá, servindo também como acampamento de tropas e local para exercícios dos milicianos.

Nas duas centúrias seguintes, embora continuasse a servir como “curral” do município, nele eram realizadas as congadas e celebrados os acontecimentos e datas nacionais, com representações teatrais ao ar livre, em grosseiros tablados que serviam de palco. Isso ocorreu no ano de 1808 para comemorar a chegada de D. João VI ao Brasil, onde os sargentos da milícia representaram diversas peças de fôlego para o gosto artístico-teatral dos nossos avós, como “Kzio em Roma” e a “Rainha Zenobia”.

No mesmo local, um interessante e curioso fato ocorria duas ou três vezes por ano, atraindo para as figueiras do Campo Grande. Era a chegada do Sargento-Mór Domingos Cardoso de Lima, riquíssimo proprietário das minas de ouro do Açongui, em Morretes. Ele vinha com a família e fâmulos para a vila, assistir às festas da Semana Santa, do Espírito Santo e do Rosário, indo alojar-se com sua comitiva de nada menos que 50 pessoas no sobrado de sua propriedade, cujas ruínas existem na rua da Fonte, um pouco aquém da Igreja de São Benedito.

A casa em Morretes era adornada de damasco e seda, a mesa servida com baixela de prata. Suas mocamas ou mulatas, pajens de sua família, adornavam-se com grossos cordões de ouro, totalizando mais de 100 oitavas de peso. Cardoso de Lima possuía uma banda de música de instrumento de sopro composta por seus escravos, que tocavam principalmente quando ele ia à Vila de Paranaguá, fazendo uma entrada pomposa. Além disso, era proprietário de casas de sobrado próximas à Igreja de São Benedito.

Esse minerador vivia em sua confortável casa do Rio do Pinto, servindo em sua mesa baixelas de ouro e prata, regando seus repastos com finos acepipes e os melhores vinhos de Portugal. Com uma numerosa família, sua hospitalidade era gabada por todos.

Com uma grande escravatura sob suas ordens, o Sargento-Mór não se limitava apenas à mineração; ele também se dedicava à agricultura e à criação. Com dinheiro abundante, surgiu-lhe a ideia de contratar em Lisboa um mestre de música de sopro para ensinar alguns escravos negros e organizar uma banda musical, a primeira que Paranaguá conhecia naquela remota época. A população parnanguara, ciente do dia e da hora da chegada do Sargento-Mór, acudia às margens do Campo Grande, ao longo do caminho vindo de Morretes, a atual estrada do Matadouro, para assistir ao curioso espetáculo.

À frente, a banda de música composta por negros tocava modinhas da época. Os músicos, bizarramente uniformizados de ceroulas e camisas de algodão, descalços e com chapéus de palha, faziam a vanguarda do cortejo. Um dos filhos adultos do Sargento-Mór, montando árdego corcel, desempenhava o papel de batedor, passando em revista o desfile, desde a banda de música até os carregadores que fechavam o cortejo, garantindo que todos seguissem em ordem. Não hesitava em usar o rebenque para disciplinar escravos, homens ou mulheres, que por cansaço atrasassem a marcha.

Após a banda, surgia a rede do nababo, com este estirado confortavelmente e carregado nos ombros de dois robustos africanos. Em seguida, mantendo uma certa e respeitosa distância, vinha a rede da esposa, a senhora dona, acompanhada por uma mucama a pé, pronta para atender às suas ordens. Atrás delas, sempre em fila indiana, vinham as redes das “sinhás”, filhas do potentado, cada uma com sua respectiva mucama ao lado.

Concluindo a série de redes, vinha uma mula ruana montada pela ama de leite, geralmente preta, encarregada de vigiar os “banguês” cestos suspensos um em cada flanco do animal , trazendo as crianças.

Essa era a única escrava privilegiada com montaria própria, poupada do longo e penoso trajeto de quase oito léguas desde o Rio do Pinto. Após a montaria, seguiam os carregadores gemendo sob o peso de sacos, arcas e baús contendo as roupas e objetos indispensáveis ao farto banquete da família no sobrado da Rua da Fonte, durante as festas.

Enquanto a comitiva passava pelo Imboassu, já se ouviam do Campo Grande os sons distantes da charanga dos pretos. O Sargento-Mór, apaixonado por música, pouco se importava se porventura os pulmões dos escravos estourassem de cansaço durante a árdua marcha de sete léguas a pé, por um caminho péssimo. O que ele exigia era que tocassem sem cessar, principalmente ao se aproximarem da vila, satisfazendo assim sua vaidade diante do esplendor e fausto de sua vida e de sua família.

Dada a importância social conferida ao potentado pelo posto e pela fortuna, era comum que o Capitão-Mór e a Vereança acudissem para recebê-lo. Nesse momento, o Sargento-Mór Cardoso fazia questão de que sua charanga repinicasse o que de melhor tivesse em seu repertório, encantando assim as autoridades locais. Sons agudos do fagote, graves dos bombardinos e dolentes dos pistões ecoavam, apresentando notas de uma valsa ou masurka muito em moda em Lisboa, nos paços reais, ou no Rio de Janeiro, nos saraus da corte do Vice-Rei.

Neste ponto, interrompendo-se o cortejo para os cumprimentos habituais, o Sargento-Mór dignava-se a pular da rede para receber e prestar homenagens às pessoas revestidas de autoridade. Quanto à matrona, a etiqueta da época não exigia que ela fosse constrangida a deixar sua rede; ao contrário, permanecia deitada, enquanto os “homens bons” da vila se aproximavam para cumprimentá-la e dar-lhe as boas-vindas, após obterem a licença do marido.

No caso das “sinhás”, não era costume prestar homenagem, e as moças não se ressentiam disso, apenas desejando que a massante cerimônia de recepção terminasse logo. Elas aguardavam ansiosas para se recolherem a seus quartos no sobrado próximo à Igreja de São Benedito e se recuperarem das fadigas de quase um dia de viagem, embaladas pelo ritmo cadenciado das redes pendentes de um pau, carregadas aos ombros de dois vigorosos escravos.

Concluído o cerimonial, o cortejo retomava sua marcha, agora mais lenta, pois o Sargento-Mór seguia a pé ao lado do Ouvidor ou do Capitão-Mór, acompanhados por vereadores e outros, seguidos pela multidão até a porta da residência do rico proprietário. Este episódio pitoresco, cheio de graça, remete aos tempos do Brasil colonial, e hoje dele só resta a memória evocada diante das grossas paredes desmanteladas do sobrado na rua da Fonte. Tudo passa e tudo se acaba neste mundo.

Dado o contexto despretensioso desta conversa, cujo tema são as figueiras do Campo Grande, vale a pena lembrar que nas duas últimas décadas do século XVIII, entre 1780 e 1800, o encantador logradouro apresentava a singularidade de ser, em parte, arborizado com laranjeiras. A Câmara Municipal, aliando o útil ao agradável, mandou plantá-las em benefício dos munícipes, proporcionando sombra e frutos. Dois extensos ronques de laranjeiras cortavam o campo no sentido da Igreja Matriz para São Benedito. Cuidadas com zelo, estavam viçosas e em plena produtividade, constituindo o encanto e o orgulho dos parnanguaras.

No entanto, por volta de 1799, o último ano do século XVIII, a má sorte atingiu a terra com a chegada de um novo Ouvidor, o Dr. João Batista dos Guimarães Peixoto, natural de Pernambuco e, aparentemente, ancestral do poeta Olavo Bilac dos Guimarães Peixoto. Embora instruído, carecia de educação, sendo malcriado e energúmeno. Esse magistrado começou a exercer sua judicatura rompendo com a Câmara Municipal e atentando contra a autonomia do município.

Nesse período, o Sargento-Mór Domingos Cardoso de Lima já não existia, deixando desocupado o sobrado da rua da Fonte, hoje Conselheiro Sinimbú. O novo Juiz, instalando a Ouvidoria, gostava de passar as tardes de domingo nas sacadas do prédio, olhando para o Campo Grande.

*1 Indivíduo muito rico que ostenta grande luxo.

*2 Dança de Origem Polaca.

Hamilton Ferreira Sampaio Junior

Referências:

NASCIMENTO JUNIOR, Vicente. As Figueiras do Campo Grande: Revista Trimestral do Instituto Historico e Geografico de Paranagua. Paranagua: Própria, 1954. 56 p. v. 1.

DESCONHECIDO, DESCONHECIDO. Provisão Régia de 1782: Provisão Régia de 1782. Morretes: DESCONHECIDO, 2012. https://historiasdemorretes.blogspot.com/2012/09/provisao-regia-de-1782.html. Disponível em: https://historiasdemorretes.blogspot.com/2012/09/provisao-regia-de-1782.html. Acesso em: 10 out. 2024.

 

 

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