Os Piratas de Superagui

hamilton |04 março, 2024

Blog | Rastro Ancestral

O expediente do dia 5 de dezembro de 1852 havia chegado ao seu término.

Foi um dia abafado, tranquilo, enervante e indicativo de trovoadas do Sul.

O porteiro percorria os corredores sombrios, verificando cuidadosamente os ferrolhos e trancas das portas internas, fechadas pelo zeloso antes de sair.

Os demais funcionários já haviam registrado a saída, em conformidade com o antigo relógio, que marcava imperturbável a hora de entrada.

Apenas o inspetor permanecia em seu amplo gabinete, com janelas voltadas para o Itiberê, e paredes que evocavam uma prisão medieval, construídas com blocos de pedra suados por escravos. Os caixilhos da porta de peroba estavam ocultos por um pesado cortinado de feltro de lã nas cores verde, ouro e azul, adornado com franjas longas.

Antiga Alfandega de Paranaguá aonde o Inspetor se refere.

Imagem Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá sem data.

Imerso na austera quietude da sala, ele refletia profundamente, a testa coberta de suor, como se uma grande preocupação o dominasse. Consultou repetidamente os apontamentos retirados de uma pasta de oleado lustroso, adornada com uma pintura a óleo de um magnífico buquê de papoulas crespas intercaladas com junquilhos brancos.

Finalmente decidido, pegou a pena e uma folha de papel almaço timbrada com a coroa imperial, começando a redigir um ofício de maneira natural, indicando que se tratava de um assunto cuidadosamente ponderado em sua mente. Como chefe da repartição, agia como seu claviculário legítimo.

Caetano de Souza Pinto, o líder da repartição e seu fiel claviculário, era o responsável pelas ações descritas. O expediente em curso tinha como destinatário o Presidente da Província, Dr. Joaquim Otávio Nébias, e solicitava medidas urgentes e indispensáveis.

Esse homem, cujos cabelos começavam a mostrar tons grisalhos e cujo rosto exibia sinais de cansaço, pertencia à ilustre família Souza Pinto, sendo o pai de Constante de Souza Pinto, uma figura notável nas tradições sociais de Paranaguá e membro da fundação do Club Litterário em 9 de agosto de 1872.

Nunca antes, ao longo de sua diligente carreira, Caetano de Souza Pinto experimentara tamanha responsabilidade.

Consultado por um dos sócios da recentemente estabelecida Miro & Cia., sobre a iminente chegada do brigue inglês “Seine” de Liverpool a Paranaguá, transportando cargas para a mencionada firma, a serem liberadas na Alfândega local.

O ofício recentemente assinado consistia em um apelo urgente ao Presidente Otávio Nébias, solicitando a nomeação imediata de peritos ou práticos de comércio não incluídos no quadro aduaneiro da administração.

A chegada do “Seine” gerou intensas preocupações para o incansável inspetor, a ponto de perturbar sua tranquilidade e levá-lo a prolongar seu expediente.

Contudo, para a população em geral, a notícia provocou comentários alegres e grande satisfação patriótica, especialmente em Paranaguá, ao saber que o veleiro britânico trazia um carregamento completo destinado a uma empresa local.

Essa circunstância, até então inédita, despertou a atenção de todos, inclusive de pessoas de alta posição social, vestindo sobrecasacas e chapéus altos de pele, normalmente discretas em seus atos. Alguns até se dirigiram às áreas mais baixas do Arsenal na esperança de testemunhar o espetáculo grandioso do elegante veleiro cruzando as águas da Cotinga em direção ao ancoradouro do Porto do Gato, suas velas inchadas pelo vento.

O diligente representante da Fazenda, que em 1851 se regozijara por alugar o armazém de sua repartição por 2$000 ao mês, agora enfrentava desafios consideráveis. Perdido em conjecturas e atormentado por insônia, ele buscava soluções para o problema imprevisto do armazenamento da carga valiosa e sua classificação para a cobrança das taxas de entrada.

O ano de 1853, que marcaria a emancipação política do Paraná, encontrou Paranaguá com olhos fixos no mar, esperando ansiosamente a chegada tardia do brigue “Seine”. Os próprios associados da firma Miro & Cia. expressavam sua intensa preocupação, mantendo contato frequente com as autoridades locais, que pouco podiam adiantar.

Os dias se transformavam em noites, e estas se tornavam manhãs iluminadas de novos e brilhantes dias, sem qualquer notícia positiva sobre a possível posição do barco.

A agitação atingia todas as camadas sociais quando começou a circular, com maior insistência, um rumor desanimador de que um veleiro desconhecido havia naufragado perto de Superagui, surpreendido por uma tempestade violenta, resultando na perda da tripulação e da carga valiosa.

Revista Comercial 24 de fevereiro de 1853 edição 25 pág 1.

A voz do povo, repetida a cada momento, refletia a visível emoção diante da possibilidade trágica. Sob a falta de uma Capitania dos Portos em Paranaguá na época, o inspetor Caetano de Souza Pinto tomou uma medida momentânea, ordenando que o guarda-mor se dirigisse ao local, no próprio escaler da aduana, com dois guardas e o Amanuense Delegado Fiscal da Fazenda, para prevenir extravio de mercadorias.

Às 09 horas da noite de 27 de janeiro encalhou nas areias de Superagui.

Ao confirmar a previsão do naufrágio, o cauteloso funcionário do fisco comunicou ao novo Presidente da Província, Dr. Josino do Nascimento Silva.

Em 1º de fevereiro, às oito da noite, o Capitão Guilherme Stul, comandante do barco sinistrado, procurou o inspetor, comunicando os acontecimentos lamentáveis.

O “Seine”, que partira da Inglaterra em 17 de outubro de 1852, estava agora encalhado em Superagui, com o casco fendido e os porões invadidos pela água do mar.

Embora não tenha havido perda de vidas, a tripulação passou por momentos difíceis.

O “Seine” foi alvo do saque de alguns indivíduos sem escrúpulos, observando da praia a agonia da embarcação e roubando parte do carregamento.

Falou-se na época de mais de 200 pessoas vindas de diversas localidades próximas e, que as mesmas arrombaram os porões e saquearam a carga.

A pronta intervenção de Domingos Afonso Coelho e do cônsul suíço Carlos Perret evitou a tragédia.

Carlos Perret, envolvido nesse episódio marítimo, foi o fundador da colônia francesa de Superagui, que não prosperou.

Não apenas os habitantes locais, mas também pessoas de Cananéia e Paranaguá, participaram do saque audacioso, complicando os esforços do sub-delegado José Alexandre Cardoso em buscar e apreender as mercadorias furtadas.

Ao longo de 45 dias de trabalhos arriscados, lutando contra a fúria do mar e a agressividade dos “piratas” de Superagui, o “Feliz Conceição” conseguiu descarregar parte da carga danificada em 21 de março. Após organizar o processo e vencer os prazos legais, a mercadoria foi vendida em leilão, alcançando 36:434$225, uma quantia considerável, embora tenha havido depreciação devido ao contato com a água do mar e exposição prolongada ao sol.

Caetano de Souza Pinto, autorizando despesas de 7:294$35 para o fretamento do “Feliz Conceição” e outros gastos extraordinários, finalmente viu seus esforços serem recompensados. A arrecadação total foi de 10:930$146, resultando em um saldo de 18.294$26 a favor de quem de direito.

Dos destroços do brigue “Seine”, restaram apenas “dois mastros de pinho, vergas, velames, ferros, correntes e outros aparelhos e massames”, que permaneceram sob as arcadas do “Colégio” por um tempo, até receberem um destino mais adequado.

Quanto aos “piratas” de Superagui, parecem ter escapado da justiça, não sendo alcançados pela mão longa da lei em áreas tão remotas e pouco habitadas.

Hamilton Ferreira Sampaio Junior

Referências

DE ABREU, Aluizio. Os Piratas de Superagui. Periodico do Instituto Historico e Geografico de Paranagua: Os Piratas de Superagui, Paranagua, ano 3, v. 1, n. 3, ed. 3, p. 1-47, 1953.

 

whats | Rastro Ancestral