
Por que estão asfaltando a nossa história?

Imagem: meramente ilustrativa, sem data.
O perigo de apagar as marcas do passado em nome do “progresso”
Outro dia, recebi um vídeo que me deixou sinceramente chocado. Uma rua de uma cidade histórica de Minas Gerais estava sendo asfaltada por cima do antigo calçamento de pedras. Na hora, veio o questionamento inevitável: será que estamos condenados a cobrir — ou pior — apagar a nossa própria história?
Infelizmente, essa cena não é um caso isolado. Em muitas cidades brasileiras, principalmente naquelas de origem colonial ou com forte tradição histórica, antigas ruas de pedra estão sendo recobertas por asfalto, em obras que muitas vezes se apresentam como sinal de modernização e progresso.
Mas será que é mesmo?
As ruas também contam histórias
Quando pensamos em patrimônio histórico, logo nos vêm à cabeça igrejas antigas, casarões coloniais ou monumentos. Mas o espaço urbano é muito mais do que isso. As ruas, calçadas e praças também fazem parte da identidade de uma cidade. O chão que pisamos guarda as marcas do passado, as histórias das pessoas que por ali viveram, trabalharam e construíram o lugar onde estamos.
Essas pedras antigas, colocadas ali com tanto esforço e técnica por trabalhadores anônimos — os chamados calceteiros — não estão ali por acaso. Elas representam o modo de vida de outras épocas, o conhecimento transmitido de geração em geração e o jeito próprio de cada cidade se construir ao longo do tempo.
Em Paranaguá, um exemplo que resiste
Aqui em Paranaguá, por exemplo, muitas das pedras usadas nas ruas do Centro Histórico vieram da Ilha da Cotinga, nas décadas de 1910 e 1920. Foram cortadas, transportadas e assentadas uma a uma por trabalhadores que dominavam essa arte do calçamento.
O problema é que, em vários lugares, esse trabalho está sendo escondido debaixo de uma camada de asfalto. Às vezes por desconhecimento, outras vezes por descaso, ou simplesmente por uma ideia ultrapassada de que progresso significa apagar o passado.
Modernizar não é destruir
Ninguém está dizendo que as cidades não precisam de manutenção ou de melhorias na infraestrutura urbana. Claro que as ruas precisam estar em boas condições, seguras e acessíveis para todos. Mas é perfeitamente possível conciliar modernidade com preservação.
Aliás, as ruas de pedra têm vantagens ambientais importantes: ajudam na drenagem da água da chuva, diminuem o risco de enchentes, reduzem o calor e ainda conferem identidade e beleza ao ambiente urbano.
Além disso, o patrimônio histórico bem cuidado é uma fonte poderosa de turismo, geração de renda e orgulho para os moradores.
O que diz a lei?
Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 determina que o patrimônio cultural brasileiro — incluindo aí bens de natureza material, como as ruas de pedra — deve ser protegido e preservado. Também o Estatuto da Cidade reforça essa obrigação.
Portanto, antes de asfaltar uma rua histórica, o poder público tem o dever de consultar especialistas, ouvir a comunidade e avaliar se aquela intervenção é mesmo necessária.
Precisamos escolher:
Queremos cidades que se parecem com qualquer outra, todas iguais, cinzentas e sem memória?
Ou queremos preservar aquilo que faz a nossa cidade ser única, diferente, cheia de história e de alma?
Preservar o patrimônio não é viver preso ao passado. É, na verdade, um ato de respeito com quem construiu esse caminho antes de nós — e um presente para as futuras gerações.
Hamilton F Sampaio Junior
Referências:
Item 3 da Carta de Petrópolis sobre Sítios Históricos — 1997. 1º Seminário brasileiro para preservação e revitalização de centros históricos. CURY, Isabelle. Org. Cartas Patrimoniais. 2. Ed. Rio de Janeiro, IPHAN, 2000, p. 285.
Segundo Atahualpa Schmitz da Silva Prego, a arte de pavimentar caminhos (verdadeiras paredes deitadas) é tão antiga quanto a humanidade e já era utilizada pelos romanos em 900 A.C. Nabucodonosor, rei da Babilônia, e Dario, rei da Pérsia, pavimentavam suas estradas 500 anos A.C. A memória da pavimentação no Brasil. Rio de Janeiro. Associação Brasileira de Pavimentação. 2001, p. 22.
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte. 3i. 2021, p. 124.